10 de mai. de 2009



Traições tolerantes
- histórias de um tempo em que
tentávamos reciclar gentes e coisas -

III


Os ratos vinham daquele lado. Eles eram muitos. De todos os tamanhos. Iam e voltavam, tornavam a passar novamente. Faziam rápidas paradas, uma olhadinha e assustados, continuavam o caminho. Passei muitos dias depois pensando sobre o “ser rato”. Pareciam querer brincar de esconde-esconde comigo. Interessante que naquele dia não senti o asco habitual que a maioria dos humanos sentem destes aparentemente "inofensivos" animaizinhos. São exatamente um igual ao outro. Existem os grandes, outros menores, mas todos eram igualzinho ao outro. A cor, o formato dos olhos, os pelinhos da boca, enfim.
Ao mesmo tempo, o lixo sem trégua era colocado aos montões em cima da mesa de trabalho. Rapidamente, a montanha era como que engolida por oito trabalhadoras, que na mesa se escoravam, tentando descansar as pernas.
De baixo do viaduto foi que conheci a família dos Machado. Odete a matriarca. Alaor e Terezinha, eram seus dois filhos. Os três organizavam a vida daquela pobre gente, naquele viaduto, que por debaixo de sua função de ponte, tornou-se galpão de Reciclagem.
Os três viventes, eram o retrato do pardo brasileiro. Não eram negros, não eram brancos, não eram índios, eram os brasileiros. Em suas bocas, muito poucos dentes. O cunhado de Alaor, genro da Odete, esposo da Terezinha, chamavam-no de Caco. O Caco, um retaco grosseiro e agressivo se confundia com a grossura de seu tórax peludo e sujo. Sua função naquele escuro “galpão“, era garantir a mesa de trabalho sempre bem abastecida de lixo para que o trabalho não fosse interrompido.

Canhoto era o pai do desdentado Alaor e da Terezinha, marido de Odete. Foi jogador de futebol da IIª divisão numa cidadezinha do interior do Paraná na década de 70. Foi uma das primeiras gerações de craques que fizeram do futebol profissão e que graças a Odete, ao dependurar as chuteiras, tinha conseguido comprar um pequeno apartamento na rua Paraiba entre as Avenidas Farrapos e Voluntários da Pátria. A depressão pós fama levou Canhoto a beber, e o misto entre jogatina e prostituição papou o apartamentozinho. Quando Canhoto morreu, os quatro já moravam entre os abrigos públicos e as praças da cidade. O viaduto agora, era a casa da família e lugar de trabalho. Descobriram no lixo e nos co-irmãos de infortúnio uma forma de ganhar a vida.

Alguns anos antes, numa dessas esquinas do tempo, entre latinhas de alumínio, caixas papelão e pet, Alaor encontrou Caco, pelo qual se apaixonou perdidamente. Caco foi morar em sua casa, no viaduto.
Naquele dia encontrei Alaor que acabava de sair do pronto socorro meio sonolento de tantos analgésicos tomados e injetados. Encontrava-se com o braço enfaixado – tratava-se segundo ele, de uma dentada humana de grandes proporções – e com tom rude na voz, vociferou: “ele me traiu, um dia vou matá-lo”. Perguntei de quem se tratava e tive como resposta “não perde nada por esperar”. Calei-me. Alguns meses depois, encontrando Terezinha grávida pela rua e perguntando a procedência da orgulhosa barriguinha que exibia, respondeu-me: “o Caco vai ser papai”. Só então entendi a causa de braços dilacerados e juramentos de morte. Muito raramente voltei a encontrar Caco no viaduto/residência.
Num domingo de primavera encontrei Caco e Terezinha numa modesta barraquinha de camping curtindo o baby e namorando no Parque Harmonia às margens do rio Guaíba, longe dos desejos raivosos de Alaor. Soube deles, que já faziam dois meses que aos fins de semana repetiam a mesma escapadela.


O rodízio das trabalhadoras era intenso debaixo do viaduto. A exploração era assustadora. Mulheres miseráveis trabalhavam a semana toda, mas ao vender seu material, praticamente não tinham nada a receber. Iam todas embora. Ou melhor, a Odete mandava-as embora. Na outra semana vinha uma nova leva para a mesma liturgia. Qualquer possibilidade de reação: a ameaça funcionava. Lá ia embora aquele grupo, e na segunda feira pela manhã, se encontrava um grupo completamente diferente. Assim passavam-se os dias. Alaor se comunicava muito bem, mobilizava simpatizantes, atava parcerias e a solidariedade chegava. A geladeira nova doada – patrimônio coletivo - tinha cadeado na porta, e o fogão exibia um cartaz maroto: “proibido o uso”. As trabalhadoras comiam na rua, na pobre marmita fria.

Certa vez descobri Alaor dormindo numa pensão próxima ao viaduto/galpão. A prefeitura pagava. Alaor não deixara de ser um morador de rua. Junto com Alaor saía também, da mesma pensão um jovem alto, boa pinta, de olhos azuis, dizendo-se também ser morador de rua e colega de pensão. Falava com desenvoltura de qualquer assunto apresentado, não demonstrando nenhuma das conhecidas característica de um morador de rua tradicional. De quando em vez, encontrava-o no galpão dando sugestões, muitas vezes vi discutindo com a família dos Machado, eficácia na gestão do empreendimentos, preços de produto, a exploração de atravessadores e a possibilidades de ampliação do negócio, etc.. Logo começou-se a perceber através das pessoas mais próximas que o jovem e bonito rapaz tratava-se de um novo namorado de Alaor.

A reunião começou já passava das vinte horas. Fui convidado para dar uma contribuição a um grupo de empresários e entidades da sociedade civil de um bairro nobre da capital, sobre como eles poderiam contribuir na ajuda desta categoria de trabalhadores. Muita conversa como sempre nestes tipos de reunião e de público, análises de todo o tipo, depoimentos, ponderações. Enfim a reunião termina, como sempre, cheia de bons propósitos, enquanto as pessoas começam a despedirem-se uma das outras. É neste momento de uma certa sonolência no ar, que se apresenta o neto de uma bondosa senhora que a levaria de volta pra casa. Surpreendentemente tratava-se de um elegante jovem alto, de olhos azuis de muita boa pinta. Discretamente fui ao banheiro e lá permaneci os mais longos cinco minutos de minha vida, mas com um juramento feito: um dia contarei as histórias das traições tolerante, nos tempos em que tentávamos reciclar gentes e coisas.
Pedro Figueiredo
maio de 2009

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