2 de abr. de 2009




As mesmices globais



Duas catedrais, uma em frente à outra. As duas lotadas. Música ambiente, harmonizavam seus espaços. Em uma delas, pessoas silenciosas, que na penumbra meditam, dormitam, cochicham. O que cochicham? Diante de uma pequenina imagem barroca, do altar lateral da velha catedral cinzenta, a mulher chorava de pé, copiosamente. Entre soluços, rezava alto. Pedia pelo marido que se foi. Será que morreu ou dela desistiu? A velha catedral já era cinza nos tempos juvenis de minha mãe, quando um lambe-lambe a fotografou fogosa.
Na outra catedral à frente, seus fieis consomem. Na calçada em frente da outra catedral, mulheres gorduchas oferecem alho aos transeuntes. “Alho porro”, gritam! Madames reluzente, - parecendo de cera ou plástico – compram. Compram por pena da negra gorducha.
No outro lado da rua, eram oferecidas velas coloridas. Atravesso a avenida entre pedintes mal cheirosos da escadaria, no canteiro central jogados, em baixo de árvores frondosas.
Fortes seguranças espantam o pipoqueiro teimoso, que “a los pasitos” fica sempre mais perto da porta da outra catedral. Belíssimo prédio neoclássico. Todo reformado. Ou melhor, a fachada. A casca. Aquilo que os bancos fazem com os antigos prédio de históricas capitais. Salvam as cascas. Dentro, tudo é linha reta. A mesmice pobre da reta. TOM é a razão social do churrasquinho que inferniza os passantes com seu cheiro graxoso e fumacento. O empreendedor preferiu a sombra rala da sina-sina de minúsculas flores amarelas em frente das duas portentosas catedrais.
As duas tem a mesma missão cruel: criar atmosferas próprias em vista de acalmar a ansiedade humana. Ansiedade: a dor silenciosa que vem de dentro da alma, de suas entranhas. Dor, que não para no seu latejar. Desejo inexplicável, incontido de ir não se sabe pra onde. Desejo de comer não se sabe o que. Gastura que ninguém explica. Vulcão adormecido pelos produtos oferecido no interior das velhas e das modernas catedrais. Angustia que se re-volta enfurecida, desconsolada em solidão, em busca de novos desejos incontidos.
O templo do consumo seduz. Seduz multidões. Os que estão dentro e os que estão fora dele. Os que passam na porta são atraídos pelo seu cheiro, pela sua luz. Lá dentro tudo é luz. Luz intensa de fragrância suave. Os sentidos já foram todos ludibriados pelas mídias poderosas, que silenciosamente estudaram as raízes da solidão humanas. Indivíduos, grupos, são levados para dentro dele por suas próprias pernas, ou encanto de sereia.
Outras multidões ficam fora, olham e sonham desejosos de também um dia as mercadorias estejam ao alcance de suas mão, para também manipulá-las e descartá-las. O fetiche se constitui pela sua inatingibilidade. Quanto mais distantes se apresenta, mais desejado são. Os ditadores de ontem e de hoje, servem-se ainda destas estratégias, para se perpetuarem na arte de serem adorados. Uma vez bolinadas, conhecida sua materialidade, o encanto fenece. De forma inteligente os sistemas criam outros, e outros tantos para continuar a ópera.
A Idade Média mostrou-se pródiga na produção de artefatos precisos em vista da manutenção do controle. Fragmentos de ossos apareciam em determinados lugares, e para lá multidões se encaminhavam. Enquanto isso não se questionava a ação escravista do senhor feudal, e dos poderes incontroláveis dos papas.
Novas e velhas mercadorias se revezam, com o mesmo objetivo. A estratégia de controlar a ansiedade humana é antiga. A musica ambiente suavemente toca, enleva a alma, aliciando aos outros fieis a se auto-controlarem através da mortificação da carne, suplantando - adiando - o desejo. O judaísmo suplantou o diferente. Às tribos ditas pagãs é imposto a pobreza monoteísta, unificando tudo, acabando com o diferente, com as diferenças e sacrificando a diversidade. Concentrado poder num só Deus, masculino e branco.
Na outra catedral, os mesmos apelos. Os sentidos se aguçam. A propaganda se encarrega de armazenar na retinas suas imagens. Uma luz intensa assanha o olho. O tato interpelado compulsivamente apanha o objeto do desejo. Das prateleiras ele descem. O carrinho recolhe. O ritual continua: gorduras, amidos, xampus, diet. Pilhas de papel higiênico despencam, os repositores engalfinham-se na organização impecável. Tudo na mais perfeita ordem, para a liturgia continuar.
Entre pilhas de um referido papel, e de latas de alimentos pra gatos, o jovem casal discute: “Tarado! Você estava olhando pra ela, me respeita”, e a contenda continua. Que desejo imenso de escutar detalhes da recaída ciumenta! Mas o medo da indiscrição é maior que o desejo de escuta do drama conjugal. Do incontido medo de ser trocado, de ficar só, com seus botões, no encontro radical consigo mesmo.
Na outra catedral o sino toca. O agudo suave toma conta de tudo. Revoadas de pombos transferem-se de torres. Idosas senhoras lentamente sobem as velhas escadas cinzentas, diante das mãos estendidos de pedintes. Os poucos trocados ali jogados, alimentaram assassinos vendedores da pedra venenosa. Algumas olham, nem todas. Algumas trocam de lado na escadaria. Mas outras mãos lhes suplicam. Assim continua a romaria, na bendita escadaria. Dos que pedem e das que sobem.
Depois de visitar a velha e a nova catedral, cansado, pensativo sento no banco onde pretendo contemplar o fim de tarde fora da minha capital. O entardecer é ruidoso na Avenida Rio Branco. Incrível meu Deus! Mas reparo quase sonolento que quase tudo é a mesma coisa. Lá e aqui. As lojas, os outdoors, as sacolas, as bermudas que os jovens usam todas são iguais. Não seria muito difícil contar os modelos usados entre os homens, inclusive as cores são as mesmas. Todos mostram a marca das cuecas que usam. Tinha a sensação que logo-logo estaria vendo alguém só de cuecas caminhando na calçada. Na sua grande maioria usam fones de ouvidos. Muitos, muitos mesmos parecem que conversam sozinhos, ou caminham rindo pelas ruas. As tatuagens? Bom, as tatuagens, parecem que todas são exatamente iguais em suas cores são muito semelhantes, inclusive os lugares onde as aplicam, no pescoço, nas panturrilhas, no umbigo, nos seios. As tatuagens tomaram conta, marcaram o corpo inteiro. Como tropa de gado, caminhamos silenciosos, teleguiados por forças invisíveis poderosas que fazem moda, produzem cheiros, novos vícios.
Meditava comigo enquanto apreciava do lusco-fusco da cidade que não deixava de ser linda.
Enquanto isso, lia prazerosamente a Viagem ao Redor do Meu Quarto de Xavier de Maistre, escritor francês - 1763-1852, que entre tantas coisas lindas e duradouras que escreveu se perguntava se “O desejo eterno do homem não seria o de aumentar seu poder e suas faculdades, de querer estar onde não está, de recordar o passado e viver no futuro. Desejaria comandar exércitos, presidir academias, ser adorado pelas mulheres belas e formosas, e mesmo assim possuindo tudo isto ainda terá saudade dos campos e da tranqüilidade, invejará a choupana dos pastores. Seus projetos, suas esperanças naufragaram sempre de encontro às desgraças reais inerente à natureza humana. Nunca lhe será possível encontrar a felicidade’.








PEDRO FIGUEIREDO
Na cidade de Santa Maria
Nos 15 dias, que nos introduziram-nos no ano de 2009
As cidades catalizadoras


Catalizadoras é a característica das grandes cidades "matrizes" nas Regiões Metropolitanas. Como forças centrípetas gigantescas sugam dos municípios da periferia suas alternativas econômicas, de lazer e cultura. A estrutura econômica dos municípios que umbilicalmente se relacionam com elas sofre uma espécie de "atrofiamento" permanente e ascendente. É em direção a elas que se locomovem as pessoas para comerem sorvetes, comprarem alimentos, roupas, irem aos cinemas... Os que não conseguem ir por absoluta falta de condição financeira - a grande maioria - ficam na degustação das empoeiradas ou lamacentas ruas e becos de cidades cada vez mais desordenadas: para os homens nos fins de semana restam os bares de cachaça barata, para as mulheres, as igrejas pentecostais que se proliferam vertiginosamente. Uma parcela significativa, sem alternativas, degusta Silvio Santos, Gugu e o tradicional plim-plim da Rede Globo. Com o movimento de seus moradores em direção ao centro catalizador, vão com eles os recursos que não voltam, enfraquecendo a economia local, como uma espécie de mão única, sem retorno em benefícios para os contingentes da "periferia". Para as cidades periféricas sobra a tarefa de limpar o resíduo do consumo feito no centro catalizador. À elas cabe resolver os problemas dos rejeitados(as) pelo mercado de trabalho, adolescentes e jovens sem ocupação. São as cidades da periferia, que enfrentam o problema cada vez mais assustador de postos de saúde sempre superlotados de crianças e idosos, as grandes vítimas do sistema de exclusão. Como sangue-sugas gigantescos, os recursos adqridos com a venda da força de trabalho no centro catalizador são entregues na compra de alimentos aos grandes conglomerados do consumo, que se multiplicam em pontos estratégicos, asfixiando os pequenos e médios empreendimentos do comércio local.
Este debate é muito pouco colocado na agenda dos gestores locais que permanecem de forma isolada, tentando saídas isoladas. A gestão pública não acompanhou a dinâmica das mudanças estruturais dos últimos 50 anos. A compreensão tradicional da gestão das cidades esclerosou-se. Ainda não se consegue fazer uma leitura das profundas mudanças ocorridas. Inverteu-se completamente a situação campo-cidade. As cidades dormitórios da década de 80, vinte anos depois, tornaram-se cidades vivas, congestionadas de adolescentes e jovens que foram excluídos pelo mercado de trabalho, idosos e crianças que perambulam, suportando a ausência de programas e equipamentos que as incluam nas benesses que a cidade catalizadora oferece. Encurraladas por uma estrutura anacrônica de guetos - secretarias - onde cada uma olha para seu "feudo", a administração pública agoniza, oferecendo resistência em integrar ações e programas, buscando alternativas isoladas, desarticuladas, despotencializando recursos financeiros e humanos.
Os problemas vividos por uma só cidade da periferia do centro dinamizador são exatamente os mesmos vividos pelo conjunto delas. Faltam iniciativas que possam equalizar tempo, recursos, potencial humano e tecnologias disponíveis. A problemática do meio ambiente é um exemplo significativo deste flagelo. Em função dos problemas causados por apenas um município, todos os outros são vítimas diretas dos mesmos. O esgoto que faz de córregos e rios verdadeiras corredeiras apodrecidas, vai apodrecendo outros tantos que permanecem logo depois, contaminando a água, comprometendo lençóis subterrâneos, encarecendo-a no seu tratamento e gerando um número incontável de doenças desconhecidas, que logo depois vão desaguar na ampliação das filas dos postos de saúde do município periférico sem o recurso necessário e no olhar tristonho e frenético de seus habitantes. A ampliação do fenômeno urbano é uma realidade impossível conter. Somos seres coletivos por natureza. Precisamos criar espaços onde possamos ampliar o debate sobre os problema advindos desta nova realidade que nos provoca. Castells, no livro A Questão Urbana, afirma que "é necessário produzir, constantemente, novos conceitos, descobrir novas leis, à medida que as condições históricas mudam"(Castells, 1983, p. 13).
É nova na medida que não dominamos suficientemente os dados oferecidos por ela, as ferramentas conceituais que dispomos são insuficientes para dialogarmos com os novos fenômenos do urbano e com as necessidades de uma nova concepção do gerenciamento público. Temos a experiência da democratização do orçamento público através do Orçamento Participativo, e outras experiências semelhantes, que já é um avanço importante, porém os limites territoriais dos municípios impossibilitam ações articuladas, planejamentos estratégicos regionais... Várias temáticas poderiam tornar-se matrizes geradoras como questão relacionadas ao meio ambiente por exemplo, poderiam ser espécie de matriz articuladora que pensasse um desenvolvimento integrado, numa perspectiva solidária, rompendo territorialidades municipais falsas. Um desenvolvimento que seja sustentável no tempo e socialmente justo, com a distribuição equânime da riqueza gerada pelas grandes maiorias.
Outra matriz geradora poderia ser a cultura, através da reconstrução histórica dos nossos espaços urbanos, criando e mantendo equipamentos públicos que aglutinem gerações diferenciadas, proporcionando espaços de lazer, no cultivo do poético, do religioso como expressão da cultura, do artístico, com um programa integrado de ações, como o uso das escolas aos fins de semana, mutirões de limpeza de arroios, recriando o espaço e o tempo humano!
Assim também a questão do consumo, através de sua organização, não somente proporcionando a realização de feiras locais, mas centrais de abastecimento de caráter regional, com capacidade para atingir grandes contingentes humanos da periferia de nossas "cidades periféricas", interligados com centros produtores. Estes são alguns exemplos possíveis de articulação de ações de caráter regional. Pode-se começar um debate sobre o papel e a função das cidades catalizadoras e seus papéis no contexto regional, as responsabilidades a serem partilhadas, diante de sua capacidade de sugar potencialidades e recursos que poderiam ser distribuídos regionalmente.
O desafio é reunir forças, articular sujeitos sociais, constituindo coletivos regionais, que aglutinem movimentos organizados, Universidades, ONGs, poder público - com uma opção decidida pela radicalização da democracia e a inversão de prioridades, provocando espaços que articulem sociedade civil, iniciativa privada e poder público, onde se possam construir diagnósticos comuns de nossa territorialidade regional, construindo agendas comuns de eixos e ações integradas. Este desafio vai para além dos COREDES. É constituir um fórum regional de atores sociais permanentes, que estrategicamente possam planejar o Desenvolvimento Regional com sustentabilidade, na perspectiva da construção de um desenvolvimento, com parâmetros inclusivos, redimensionando concepções e valores até então hegemônicos.
pedro figueiredo
abril 2005
Texto originalmente publicado em