8 de ago. de 2009



O gari e a bela de saltos


Um buzinaço estridente chamou a atenção dos que passavam no calçadão da classe média empobrecida do degradado centro da capital. Tentando equilibrar-se nos altos saltos, a bela saltou do carro que dirigia, gritando descontroladamente. Aglomeravam-se os que passavam na lateral da praça. Os trabalhadores da farmácia, dos restaurantes da volta eram os assistentes privilegiados. A negra Maria passadeira da lavanderia, que passa todo o dia enquanto vê os que passam, na ponta dos pés tentava também entender o que acontecia. Todo mundo tentava entender as causa e o desfecho do destempero da perua barulhenta.
Em frente ao portão de sua garagem, um insensível gari resolveu estacionar o seu carro. Tratava-se daqueles carrinhos, empurrados por homens e mulheres, que circulam pelas ruas de todas as cidades do mundo, no qual se recolhe o que diariamente a sociedade de consumo descarta.
Certa vez ouvi dizer que na Europa dificilmente encontra-se um europeu empunhando um. Em França por exemplo seriam os argelinos. Na Espanha os marroquinos. Na Alemanha os Turcos, enfim, os africanos do norte. Nos Estados Unidos os latinos com preferência para os mexicanos. No Brasil e nos países que eles resolveram chamar de terceiro mundo, evidentemente são os pobres, os muito pobres que desempenham a sagrada tarefa de limpar aquilo que os outros sujam. Sagrada, pois já pensaram na possibilidade de toda esta categoria de silenciosos operadores da limpeza urbana, resolverem cruzar os braços um dia e parar de fazer o invisível trabalho?
Ao som do buzinaço desconcertante, os que passam param, talvez pensassem que a perua bela, teria descansado por descuido seus gigantes e postiços peitos!? ao volante de sua “máquina de voar”. Ao descer com seus elegantes saltos, vendo que conseguiu aglutinar curiosos, fez uso de outro instrumento para chamar a atenção da pequena multidão e do surdo gari. É a partir daí que os assistentes curiosos, com certeza tiveram dúvidas do que seria mais imundo: o interior do carrinho estacionado, ou aquele orifício de colorido esquálido, - entre comentários na pequena multidão - que perfeitamente poderia confundir-se com o outro orifício do corpo humano, que adequadamente expele gazes e outras “cositas mas”.
O gari subia a ladeira lentamente com seus instrumentos de trabalho. O boné que lhe cobria a fronte não deixava ver o que lhe aguardava. Seus fones de ouvidos os poupava dos impropérios que a ele eram dirigidos e que a pequena multidão (atônita) escutava. Atônita nem tanto. Havia posicionamentos na pequena multidão. Os contra, os a favor e aqueles que de tudo tem motivo para fazer uma gracinha: “eles são todos assim”, outros relatavam acontecimentos de uma “total insensibilidade desse tipo de gente” ou “não vai estragar o salto, gostosa”... enfim, se ouvia de tudo um pouco no meio da pequena multidão.
O anonimato fornece a química da reação. É mais fácil, mais cômodo falar ou dizer coisas que numa platéia familiar jamais se diria ou faria. Bendito ou maldito aglomerado urbano, anônimo, indiferente, onde se pode fazer tudo aquilo que sempre se desejou fazer por não ter oportunidade ou coragem suficiente. Do apimentado dos amores, aos sonhos recalcados ou adiados. No meio das grandes e pequenas multidões quase tudo é permitido. Nas praças, nos cinemas ou nas tumultuosas avenidas, são lugares atávicos para deleites saborosamente proibidos. Contraditoriamente, o mesmo aglomerado anônimo, favorece os crimes hediondos de horrores até nunca experimentados pela humanidade. Desde o assalto do pivete desnutrido que alimenta a rede do crime organizado, a prostituição infantil, a pedofilia, o assalto relâmpago tão em moda hoje nas grandes capitais.
Ao olhar para as pessoas que assistem a sena, o gari se pergunta por que a bela de altos saltos xinga com tanta veemência aquele grupo?
A “surdez” do gari não o deixa compreender que ele era o centro de toda a confusão. Na lentidão dos passos, - para surpresa de todos - junta-se a pequena multidão. Também queria participar do ato. Tira um fone, escuta... Tira o outro... escuta outro pouco... de repente, à semelhança de um sapo, estala os olhos, seu rosto se inunda de verdadeira pane. Alguém acorda-o de seu torpor falando gritado:
- Ela está xingando você!
Num misto de surpresa e indignação pergunta:
- Hã, Eu!? Todo mundo ri. Enquanto isto, a bela de saltos altos caminhava em sua direção, com dedo em riste. O gari se encolhe, mas não tinha jeito, a saraivada continuava.
Certa vez, um pesquisador resolveu trabalhar sobre a invisibilidade deste tipo de trabalhadores. Ao invés de computadores, livros, livros e canetas, pá, vassoura, rodo e pano de chão foram seus instrumentos de pesquisa, reflexão e elaboração na universidade onde estudava. Anonimamente ao lado de dezenas de outros trabalhadores durante um mês inteiro trabalhou. “Ninguém vê a gente”, ele afirmava. “Eu tinha a impressão que era como um vulto que entrava nas salas e andava pelos corredores”. Durante o mês que trabalhou o seu turno como limpador de chão, de carteiras e banheiros, apenas duas pessoas de suas relações na universidade o reconheceram. Não o reconheceram por que nunca olharam em seu rosto, em seus olhos... Este tipo de trabalhador no olhar de determinados estratos sociais, são como vultos que se movimentam, num mundo onde as pessoas são treinadas para ver/perceber coisas, artefatos bem determinados. Geralmente bens em vista do consumo, que possam ser adquiridos, manipulados e descartados. Ninguém olha para este tipo de gente que muito pouco ou quase nada pode oferecer, diante daquilo que nos treinaram entender como útil.
– Nunca mais deixe essa imundice aí, - encerrando a cena - gritava a linda de saltos altos. É a 3ª vez que isto acontece. Você não sabe que aqui é a garagem do condomínio, onde moram 60 moradores? Da próxima vez vou chamar a polícia para que tire essa droga daí. Sem nada falar, o gari deixa o grupo, - que num lapso de segundos pensou fazer parte - atravessou a calçada, tirou o carrinho da entrada da garagem e deu continuidade na sua obra de limpar a cidade. Na dispersão da pequena multidão, também me dispersei, pelas ruas da cidade antiga. Mas uma pergunta até hoje martela meu pensar inquieto: até quando os garis serão xingados, o Pataxó queimado vivo nas ruas de Brasília e os meninos da Candelária chacinados...?

“...porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não teriam uma segunda oportunidade sobre a terra.”
Com estas palavras, o escritor colombiano Gabriel García Márquez termina o seu romance Cem anos de solidão.


PEDRO FIGUEIREDO


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