11 de out. de 2009


Os filhos do Brasil



Pelo bem e pelo mal, no mundo todo é reconhecida a fama dos meninos e meninas do Brasil. Quando tem em seus pés uma bola de futebol, de Ronaldinho a Marta estão entre os melhores do mundo. Certa vez um cronista esportivo comentando o desempenho de um determinado jogador brasileiro, falava que parecia que seu cérebro situava-se em seus pés e pernas, pelas “habilidades mágicas” com que se relacionava com seu instrumento de - lazer - trabalho. Assim, os meninos do Brasil são exportados por experts em detectar talentos, cujos cérebros são hospedados por canelas e coxas formidáveis. Já houve casos de levarem a família toda para a Alemanha, para aperfeiçoamento do talento precoce. O tempo passa rápido e na maioria das vezes os meninos voltam à pátria amada ainda tenros em idade, com tornozelos e joelhos irreversivelmente quebrados, tendões arrebentados e com as mais diversas formas de avarias, ligadas a lógica da maximização do potencial adolescente. Outros tantos voltam gordos e famosos, falando os mais diversos tipos de asneiras, próprio de quem tem realmente o coração e a inteligência nas pernas e pés. Nelas, além do cérebro foram usadas suas almas por um sistema utilitarista e desumano.
Os meninos e meninas do Brasil foram matérias de capa nos jornais do mundo todo quando o pequeno Tiago foi morto, depois de ser arrastado por vários quarteirões por um carro de bandidos nas ruas do Rio de Janeiro. Eles foram lembrados também quando Isabela, a menina de classe média paulistana foi jogada – num limite indecifrável entre covardia e loucura - pela janela do prédio pela madrasta, com a cumplicidade do pai. Alguns menos otimistas arriscam afirmar o contrário. O mundo também não esqueceu da conhecida Chacina da Candelária na década de 90 no Rio de Janeiro.
Para pousar semi-nuas as meninas do Brasil, com anúncio nas mãos, disputam lugar em filas intermináveis no tira teima “de quem será a mais gostosa” para ter sua foto publicada na página central do mais chulo de todos os tablóides conhecidos da província. Seus records de venda só se assemelha “a números escandinavos de leitores”, gaba-se o empresário tirano. Um dos poderosos proprietários das senzalas modernas do século XXI.
Os meninos e meninas do Brasil dormem em esteiras de papelão, enrolados em sacos plásticos nas esquinas das cidades velhas de nossas capitais, entorpecidos pelo crack, a droga dos pobres, que hoje invade aos condomínios da classe A. Graças a Deus que bateu nestas outras portas, por que assim a elite se mobiliza, denunciando as mazelas que contamina multidões de miseráveis, e uma pequena parcela de bem nascidos. Enquanto a dengue, o mal de chagas e outras tantas doenças tropicais não baterem nestas “outras portas” continuarão morrendo pobres a rodo nas periferias e rincões esquecidos do Brasil
As meninas do Brasil, que vendem o corpo por trocados para sustentarem suas famílias, fazem parte da mesma lista de chagas consagradas da Pátria Amada. De norte a sul, a crueldade ronda seus dias – e noites. Os sofrimentos e dramas são exatamente os mesmos. Os gringos que as negociam no mercado - mercado - charmoso de Copacabana são caudatários culturais da mesma elite imunda, que perpetuou a extorsão secular na terra verde-amarela. No Rio são alemães, suecos, americanos. No norte, são franceses que através das fronteiras da Guiana, fazem voar as meninas do Brasil, em vôos sem retorno, para boates e bordeis de luxo espalhados pela Europa toda. São da mesma origem as meninas de lá e de cá. As meninas do centro velho de Porto Alegre são as mesmas dos bordeis de São Luiz do Maranhão, sede da dinastia Sarney. (Fala-se que os ruídos saídos de não sabe donde, nos dias do chá dos acadêmicos, seria Machado de Assis gritando que chutasse pra fora esse capitão do mato safado, coronel patético e asqueroso).
Os meninos e meninas do Brasil que vendem guloseimas nas filas dos ônibus urbanos, em praças e ruas de nossas capitais, são os mesmos que se assam nas carvoarias do centro-oeste brasileiro, preparando seus esturricados dias como mão de obra barata – escrava - do latifúndio mesquinho e insolente. De perfil idêntico são os meninos e meninas que aos doze anos se envenenam, ajudando seus pais a aumentar a renda familiar, classificando a folha envenenada de tabaco nas regiões fumageiras do estado gaúcho, com o falacioso argumento de que é preciso trabalhar cedo para ser gente grande responsável. Pena que esquecem, que os outros meninos e meninas, filhos de “outras portas”, exatamente nesta mesma idade, encontram-se em laboratório de línguas, treinam ginástica olímpica em ambiente climatizado, ou brincam com seus vídeos-games de última geração em bibliotecas recheadas do quem tem de melhor da literatura universal. Não precisa dizer de onde sairão os príncipes do judiciário que decidirão o destino do latifúndio criminoso, do crime do colarinho branco, da evasão de divisas...
As meninas e meninos do Brasil, são as multidões de lindos e macios rostos, vitimados por um estado omisso e corrupto que, nega os equipamentos básicos para uma aprendizagem decente, aviltando educadores com salários vexatórios, sobrecarga desumana de trabalho e condições horripilantes para o bom desempenho da arte de construir corações e cérebros, que pensem o Brasil de um outro jeito. Os meninos e meninas do Brasil, fruto deste sistema educacional decadente, são os mesmos que se agrupam nas esquinas das periferias, consumindo as tolices da rima pobre do hip-hop ao funk, cultura importada, consumida majoritariamente por quem não teve a oportunidade de conhecer aquilo de bom, que ao longo da história produzimos.
Os meninos e meninas do Brasil são aqueles filhos de todas as cores, que nas sinaleiras nos “achacam”. Portadores de uma impotência desmedida, que num misto de vergonha e medo não sabemos como comportar-nos diante do sofrimento de compatriotas inocentes. Verdadeiros estrangeiros na terra que os fez despertar para uma vida de tormentos incontáveis e frustrações irrecuperáveis.
Os meninos e meninas do Brasil são aqueles que boquiabertos somos alertados pelas mídias sensacionalistas quando se rebelam – qual vulcão adormecido vomitando torrentes de fogo - nos porões da vergonha nacional das antigas FEBENs, maquiadas por sucessivos pseudônimos. Amontoados, lá se encontram as multidões de adolescentes pardos, ou “cinza” que na nomenclatura reflexiva de Tiburi, - filósofa gaúcha -, tenta re-enquadrar nossa antropologia etnográfica.
Os meninos e meninas do Brasil são os milhares que se amontoam em escolas containers, tentando aprender lições que nada falam de suas vidas. Os meninos e meninas do Brasil, são as centenas de sem-terrinhas das Escolas Itinerantes do MST, que lhes foi negada no RS a oportunidade de pensar a sua educação a partir de sua realidade de deserdados da terra.
Os meninos e meninas do Brasil são os filhos de Elton Brum que contemplam o pai lutador, covardemente assassinado pelas costas, a mando de um governo que se notabiliza por feitos truculentos e corruptíveis até então nunca vistos na província.
Tomara que “que nossas façanhas – não – sirvam de modelo ao toda a terra”, como reza a conhecida impáfia positivista gaúcha.

Pedro Figueiredo. Setembro 2009


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O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, “democracia racial”, raramente percebem os profundos abismos que separam os estratos sociais. O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade. O povo-massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido. Inclusive o dom de serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos e, invariavelmente, imprevisíveis

Ribeiro, Darcy . O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil / São Paulo : Companhia das Letras, 1995