23 de mar. de 2009


Os cachorros de Dona Zezé


Com a porta entre aberta eu era esperado no 3ºandar. Entre a porta e seu batente aparece uma pálida senhora, jogando ao corredor e ao visitante uma baforada de tabaco fedorento. Diante de insurdecedores latidos atrás da porta entreaberta pelo ferrolho, parecia que chegava em um canil de luxo escondido naquele apartamento. O fedor de tabaco podre, aos poucos foi sendo substituído pela mistura desagradável de cheiros: cosméticos femininos e caninos, urinas ardidas que pareciam que entravam no cérebro sem muita dificuldade. Atônito permaneci, sem palavras para retribuir a atenção que a singela senhora me dispensava. Da fresta da porta, duas cabeças de pequenos cachorros esganiçavam desesperadamente. Entre “los perros pequeños” e o rosto da esquálida mulher, o focinho horroroso de um desconhecido rosnava ameaçadoramente. Checada a minha procedência com a porta aferrolhada, minha anfitriã some, e com ela toda turma barulhenta. O barulho continua, porém contido. Tirando o ferrolho e carinhosamente me convidando para entrar, a gentil senhora pede desculpas pelos transtornos da sala desarrumada, comenta amenidades, como a idade dos cachorros; sobre a vizinha desumana e solitária do andar de baixo, que reclama dos latidos durante o dia, pois “meus filhotes não latem depois do por do sol, adestro-os desde bem pequenos”. Entre tantos assuntos que desorganizadamente debulhavam da boca da pobre mulher, um eu não consigo deixar de pensar até agora, o qual me instigou fazer este registro: na época gastava em torno de C$ 1.300,00 reais por mês com sua “família”. Neste total estava incluído o veterinário, a moça que lhe ajudava a passear com a turma, a alimentação e vestimentas conforme a estação do ano. Gentilmente ofereceu-me café, que com o corpo gelado, aceitei. Ao levar a xícara à boca, vi pêlos minúsculos de cachorro por toda sua borda. Fechei os olhos e o paladar, bebendo de um só gole.
Não tinha visto tudo. Ou melhor, vivenciado. A gentil senhora entre torrentes de palavras – parecia ter estocado a mesma quantidade de jornais e de assuntos – abriu a porta de um dos quartos, e para minha surpresa, algo horroroso estava diante de mim: o quarto todo era tomado de uma camada de 40 cm de jornais imundos e de um fedor de urina inacreditável. Entre tantos assuntos falou-me que tinha chamado o Profetas para levar o jornal por que tinha por costume esvaziar a sala de 2 em 2 meses. Perguntei por que motivo deixava tanto tempo, respondeu-me que tinha medo de abrir seu apartamento com frequência a um papeleiro que a dois anos fazia a coleta e segundo ela tinha deixado de fazer. Sem saber porque não aparecia, convocou-nos.
Assim começa a dura empreitada, de descer do terceiro andar com blocos de jornal apodrecido de urina, superlotando o velho e guerreiro fusca. Na volta, para o segundo carregamento, o cheiro continuava forte, mas me surpreendi que o silêncio era total. Fui informado que comiam e para minha surpresa, comiam no quarto da gentil senhora. Desta vez ofereceu-me bolo de cenoura, com cobertura de chocolate que gentilmente agradeci, imaginando que naquela lâmina de chocolate estavam escondido milhões de finíssimos pêlos. Falou-me que a doação periódica de jornal - apodrecido de excremento - era uma forma de ajudar a quem estava precisando. E insistiu diversas vezes que o mundo seria bem melhor se todos fizessem a sua parte, e as autoridades da saúde fossem mais responsáveis e cuidassem melhor do planejamento familiar.
Gentilmente pediu-me que voltasse todos os meses e na saída presenteou-me com um saco de roupas usadas para distribuir aos trabalhadores do galpão. Alguns dias depois descobri que muitas das roupas “que muito pouco usei” tinham sido juntamente com os jornais, cama para seus pimpolhos.
Saí desesperado em busca de vento puro e sol, pois fui contaminado por aquele ambiente desolador. Vários dias depois, ao lembrar do acontecimento, o cheiro voltava com uma intensidade inacreditável. A pobre mulher aposentada à 15 anos encontrava em seus companheirinhos a força para continuar vivendo, sua solitária vida. Os filhos o abandonaram a muitos anos. Segundo ela todos estudaram muito, estavam fora do Brasil. Ganhavam muito bem. De tanto que estudaram esqueceram-se da mãe. Em sua torrente de palavras, me contou coisas incríveis: como o paladar diferente de cada um dos cachorros, como eles retribuíam seus momentos de tristeza ou alegria. Alguns pareciam-se muito com ela, por exemplo em reações coléricas diante da frustração, do não desejado, do desconhecido... Não canso de me perguntar nas motivações que levaram dona Zezé a fazer aquela opção na vida. Porque alguns optaram em adotar cachorros ao invés de crianças? Porque alguns sorridentemente vivem a vida e outros tristonhos palmilham a vida até emudecerem. Pensei na crueldade que move alguns e na doçura que move outros tantos. Os duzentos mil milionários que nosso país engorda, de que jeito eles vivem, quais são suas conversas, seus desejos e o que passa no coração, no silêncio solitário da alma? Mattéi, filósofo francês refletindo uma vez sobre a barbárie humana faz a reflexão do i-mundo do mundo moderno. A i-mundice do mundo fragmentado em que vivemos, criou a formula necessária para a formação de um homem anestesiado na sua dissecação. Realidade tensa no dizer de Milton Santos. O indivíduo se dilui no coletivo/massa construído fora de mim, sem a minha participação, por desconhecido poder fazedor. Faz-se o corpo bonito, aperfeiçou-se a suavidades nas simetrias, mas o nó da solidão humana não desatou. Na massificação, da moda e da cultura, além de empobrecer a estética, oferece-se uma falsa aparência de segurança dum ego solitário. Quando um se movimenta, a partir de um comando, movimentam-se todos, com o mesmo dins, a mesma tinta no cabelo, o mesmo brinco, todos teleguiados por um poder sem rosto, sem pátria, sem alma...
Dona Zezé me provocou o pensar. Lembrei-me da Caverna Platônica. Dei-me conta da ilusão da qual estamos imersos. Enquanto tudo parece avançar, continuamos atormentados pela divisão. Divisão do Ser. É melhor dialogar com os animais, do que com seus iguais. O outro é o problema. Um problema insolúvel. Melhor não mexer. Aqui fico eu com meus gatos, meus cachorros...
Nunca mais soube de dona Zezé, mas sempre que dela me lembro, me pergunto, se como num romance de Kafka, ela não acabou fundindo-se à eles, “seus companheirinhos”, comendo suas comidas, dormitando e com eles sonhando, fazendo consultas ao veterinário... Será que ela já não era um deles e eu equivocadamente não pude ver?



Pedro Figueiredo
Agosto de 2007

17 de mar. de 2009




Os ossos do Juvenal



Isto aconteceu já faz tempo. Nos tempos de nossa juventude. Tempos em que tínhamos a certeza que faltava muito pouco para fazermos a revolução; onde as pessoas e o mundo seriam transformados em um ninho de justiça e de alegria. Numa sexta-feira a noite, dois meninos esbaforidos invadiram nossa casa. De tão cansados eles não conseguiam falar. Depois de tomar água, e muita insistência nossa para que se acalmassem, começaram: “vai lá em nossa casa, o diabo entrou no corpo do nosso pai. Vamos lá, vamos lá...”.
Por becos escuros saímos também esbaforidos. Empurrados por um misto de ansiedade e curiosidade, corríamos na direção da dita casa onde o demônio resolveu fazer sua morada. Muita gente na frente. Como os barracos estavam um quase em cima dos outros, todo mundo aglomerou-se em frente da moradia sinistra. Deixaram suas casas, seus afazeres de um rotineira noite de sexta-feira: as carnes graxozas já cheiravam queimadas, mistura de sons sertanejos variados, mulheres no meio de suas maquiagens, alvoroçavam-se em disparatados comentários, sem falar na cachorrada que desinquietas, circulavam entre as pernas dos curiosos assistentes.
Urros satânicos eram ouvidos já de longe. Os comentários ao longo do beco que percorríamos com certa dificuldade, eram variados: Um velho de barba mal feita contava acontecimentos semelhantes, de gente que uma vez “possuídos” das orelhas vertiam sangue, e que em contato com a terra transformavam-se em líquidos mal cheirosos, afirmava de forma categórica ser o cheiro do diabo: o puro cheiro do enxofre. As crianças, bem, as crianças faziam a festa! Confesso que não vi em nenhum daqueles olhinhos sinais de apavoramento.
Quando entramos na sala, sem exagero, estava totalmente lotada. Os urros vinham do quarto, separada da sala por lençol. A cozinha era uma pequena varanda e parecia que a porta era feita de muitas cabeças, todas de mulheres alvorotadas.
Enfim, entramos no quarto. A cena era inacreditável. As pessoas soavam, pelo excesso de calor, os cabelos colavam ao rosto de mulheres que circundavam ao redor da cama. Um homem, relativamente gordo, de pele morena, encontrava-se de calção, atado pelas mãos e pés. Com pernas e braços abertos amarrados, tomava conta da cama toda. A frágil cama de madeira era golpeada, com o que restava do corpo solto. Uma espécie de transe começou a tomar conta de mim. Tinha uma sensação de que estava sonhando, ou flutuando. Não podia ser verdade. Aos pés da cama, um mulher jogava sal no pobre corpo, e sua boca estava cheia de “colas de lagarto” para uns, ou “espadas de São Jorge” para outros. Da boca diabólica vertia uma espécie de espuma, esverdeada pela plantas invasoras.
Recompondo o primeiro impacto, pedi silêncio. O silêncio prontamente aconteceu. Peguei das mãos da mulher o frasco que dele era jogado o sal. Num daqueles lances de espírito que nunca se saberá de onde sai, comecei a jogar sal pela cabeça da população que habitava aquele pobre quarto. Lembro que algumas mulheres se benziam com o sinal da cruz. Pedi para uma mulher que passava álcool em seus braços que tirasse as plantas daquela pobre e dilacerada boca. Assim foi feito. O silêncio se fez total por parte das participantes/assistentes. Somente o corpo amarrado e o ringir da velha cama ainda não se aquietavam. Pedi para que todos dessem as mãos e rezássemos um Pai Nosso. Confesso que foi o mais fervoroso Pai-Nosso que já ouvi rezado. Pedi calmamente que o desatassem. Alguém retrucou com medo que se suicidaria. Me deu medo. Confiante, novamente pedi. Não aconteceria nada, tinha muita gente em volta da cama, da casa, no beco. Desamarrado lentamente foi. De repente o homem deu um pulo na cama, e sai caminhando cabisbaixo como quem procura alguma coisa em direção a porta da rua. Uma vez no pátio, pelo portãozinho de madeira tomava o beco, e como num corredor polonês, olhares tristonhos e curiosos o espreitavam. Ele não falava, caminhava entre luzes e sombras, parecia que olhava os rostos e o chão, sem vê-los.
Terminado o cordão de assistência, começou a correr. Correu desesperadamente gesticulando os braços freneticamente. E lá fomos nós, muitos de nós, novamente correndo atrás do atormentado homem. Ele corria, como que não sabe para onde vai e nós também. Corríamos. Tomou a direção do cemitério dos pobres da Santa Casa, do qual se falavam estórias de coisas nunca vistas. Com certeza nunca vistas mesmo.
Ao chegar em frente do portão gigante, tentou subir, e não conseguiu. Tirou do pescoço um cordão e joga para dentro do cemitério. Escalou, finalmente, o muro ao lado de mais de dois metros de altura. Enquanto gritava coisa que não se entendia, escalamos também, restando apenas três dos nossos no chão. Uma vez no topo, olhando aquela imensidão de cruzes silenciosas, como que desencantados, empreendemos a difícil descida. O homem senta no chão e começa um choro convulsivo. Aos poucos se refaz. O necessário silencio se fez. Calmamente começou falar. A falar como alguém que não tem ninguém a sua frente.
Juvenal, seu velho pai veio para cidade grande junto com o último filho dos quatro que já estavam na capital. Antes de morrer pediu que não o deixasse sepultado longe da sua família, de seu povo na pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul. Quando da data de seu falecimento, os filhos todos muito pobres, não tiveram condições de sepultarem o pai como lhes havia pedido. Quando completou-se o tempo para transladar os restos mortais do velho Juvenal, voltaram ao cemitério para uma segunda tentativa. Chegaram a conclusão que não teriam condições novamente. Alem da dor de todos estes movimentos impotentes, era muito caro os gastos com o cemitério, e emperrava numa burocracia inacreditável. Assim começava a segunda parte da história. Em conversa com amigos, os filhos foram informados que subornando o coveiro, era possível resgatar o que restava do corpo do pobre Juvenal. Assim foi feito. Rateio suado, pagaram o coveiro corrupto, e a mala foi deixada no lugar e na noite combinada. Entretanto, na madrugada quente daquele verão malandro, como acertado foi, a mala, com os ossos do velho Juvenal lá não se encontravam. Misteriosamente desapareceram, ou nunca lá foram colocados.
Naquela sexta feira, depois da tradicional cachacinha de final de tarde, ao homem moreno, de calção e levemente gordo, apareceu o velho Juvenal, dizendo a ele que jamais descansaria longe de sua gente e de seu pobre povo. Ao pobre e coitado filho imputou-se , a culpa da tragédia cultural de uma geração miserável, desgarrada da terra, vivida no lamacento chão das periferias de nossa capital, e enterrados em valas comuns, longe de seus entes queridos.


Pedro Figueiredo
Setembro 2008