10 de mai. de 2009


Traições tolerantes
- histórias de um tempo em que
tentávamos reciclar gentes e coisas -

I

Virginia negra bonitona e vistosa, chegou em Porto Alegre há 30 anos atrás na boleia de um caminhão carregado de aipim, oriunda de um quilombo no interior de São José do Hortêncio. Foi parar num conhecido bordel da Voluntários. Depois de muitas perguntas sobre sua saúde, revisão dos dentes, a escalaram para acompanhar um fazendeiro que vinha visitar seu filho que estudava na capital. Depois daquela noite, experimentou todos os tipos de noites e as mais indiscritíveis formas de desejos. Teve 5 filhos. Criou todos atrás do Morro da Polícia. A noite foi sempre sua companheira. Seus prazeres, seus trabalhos. Certa vez me contou que cozinhava num daqueles restaurantes que varam a noite entre a Voluntários e a Farrapos, a serviço da prostituição noturna. A filha, já crescida vendeu sua casa e sumiu. Com as duas netas, varizes nas pernas, poucos dentes na boca, Virginia foi morar na marquise da estação do metrô Mercado. Nas últimas noites, antes de chegar no galpão de reciclagem, varria as ruas da capital pela madrugada. As netinhas foram recolhidas e acabaram morando num abrigo de meninas no Bairro Santo Antonio.
Quando cheguei pela manhã na segunda feira no galpão, ela já tinha limpado tudo. Pátio, banheiros, panelas...
Os dias passavam enquanto Virginia mancava silenciosa e obediente, trabalhando o dia todo. Era pau prá toda a obra. A todos servia. Benzia e na mesma hora recomendava o chá adequado.
Com o passar do tempo, Virginia foi ficando triste e encontrávamos chorando pelos cantos. Dolores, a chefona do Galpão se ofereceu para levá-la ao médico. Diagnostico: depressão. Dolores comunicou numa rápida reunião: Virginia precisava ir ao psiquiatra todas as quintas-feiras pela tarde. Dolores, de pronto, repassou suas responsabilidades da mesa de triagem às outras companheiras de trabalho, e lá ia Virginia, visivelmente contrariada, choramingando, quase de arrasto para a consulta com o "maldito psiquiatra". Sol causticante, garoa gelada. Dolores puxava Virginia... lá iam elas, dobravam a esquina e se perdiam entre multidões de carros fumacentos e pessoas endoidecidos da esfarrapada Voluntários.
Benedito era o companheiro de Dolores, pessoa de perfil dócil e afetuoso. Dolores, mulher de personalidade forte e fogosa, a todos envolvia com suas iniciativas. Mandava e desmandava naquele grupo de miseráveis do galpão que alí se amontoavam pela necessidade de teto, comida e afeto.
De vez em quando Benedito me entregava, cartas enormes, pequenos bilhetes, que ele escrevia secretamente declarando seu amor incondicional por Dolores. Muitas e muitas vezes me surpreendi, sugerindo que trocasse palavras, adocicasse termos, invertendo-os, propiciando musicalidade ao texto. “Ela é linda, Pedro”, “veja como ela é doce”, ou “Deus é bom, meu deu este presente”. Bom pai, os filhos adoravam Benedito. Adoçava o leite do jeitinho que o filho pedia, fritava pasteizinhos de goiabada no domingo de manhã levando na cama para o café com Dolores. Numa noite de sábado, apareceu com Dolores no colo em meu quarto, falando em seus olhos diante de mim, de como o amava.
Naquela tarde de quinta-feira com os olhos arregalados apareceu Benedito na porta: “Um homem acaba de telefonar dizendo que Virginia passa mal em um banco da Praça da Alfândega“.
Lá Benedito foi encontrar Virginia, que chorava ao ombro de um dedicado office-boy que num impulso solidário acompanhou os acontecimentos sem muito compreender. O compadecimento juvenil entrou em ação ao ouvir seus gritos de socorro, ao ver sua bengala ser jogada fora por um casal de namorados no meio dos arbustos da praça. Foi dele que Benedito recebeu o telefonema assustador.O office-boy quase que entregando Virginia ao homem que chegava, saiu de fininho, apavorado para terminar suas tarefas daquela tarde gelada.
Benedito escuta Virginia, não acreditando no que ouve. Está convencido que Virginia blefa. Inventa, enfim... “ha mais de um ano, Dolores, todas as quintas-feiras, das 14 às 17 horas freqüenta um hotelzinho barato na rua da Ladeira“. Durante todo esse tempo, Virginia nunca foi a nenhum psiquiatra. Faça chuva faça sol, nem Dolores nem Virginia não faltavam os compromissos imperiosos: Virginia na praça sentada no banco, quente ou gelado, com sua bengala escondida. E Dolores, no motelzinho barato, transa faceira, feliz... Tudo continuaria, se naquele dia, a velha Virginia não tivesse quase congelado suas frágeis pernas no frio glacial naquela tarde. “Benedito te esconde, lá vem eles” fala baixinho a velha Virginia, que já se sentia aquecida, pelo casaco surrado que o cobria.
Escondido, o suor escorria. Benedito tremia. Mas tinha certeza de que seus olhos não o traíam: lá vinha Dolores feliz, adelgaçada pelo prazer despendido. Recolheu a bengala, devolvendo a Virginia. Para completar a desgraça do Benedito, ao lado da Dolores, estava Floriano, o cara forte e parceiraço de tempos antigos. Depois de rápidos cumprimentos, Virginia se levanta. Dolores identifica o casaco surrado, e congela. Ao virar-se, Dolores vê Benedito pondo um fim ao banco da espera. Calmamente Benedito diz entre soluços, “não acredito, não acredito”. O mau estar se desfaz com certa rapidez, e assim, voltaram os quatro pra casa, absurdamente conversando as amenidades cotidianas de um galpão de reciclagem.
Sorrateiramente passaram-se os dias. Num crepuscular fim de tarde, o Catarina – mulato malandro, que degolou a mulher e fugiu para o sul - chegou silenciosamente em minha janela, fazendo sinal que viesse olhar para o outro lado do muro. Desconfiado, enfiei meus olhos no pequeno buraco. Não acreditei. Olhei novamente tentando arrancar os demais tijolos que estreitavam minha visão. O inesperado eu vi: Benedito e Floriano, docemente beijavam-se, abraçados um ao outro sob o testemunho da lua cheia.

Pedro Figueiredo
maio de 2009

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