10 de mai. de 2009


Traições tolerantes
- histórias de um tempo em que
tentávamos reciclar gentes e coisas -

II


Uma bondosa mulher. Medicina sua profissão, visitava o galpão de reciclagem todas as quartas-feiras no fim da tarde. Juiz de direito era seu companheiro, homem grisalho, sem sorrisos nos lábios e de face tensa, que nem sempre chegava com ela. Falando em inglês, brincava: “time to tea”. Beijava distraidamente cada um que encontrava. Lembro sempre de seu andar esbelto, olhos claros, discretos, mas sua pele denunciava seus mais de 50. Sempre carregava balas na bolsa, nos bolsos do jaleco, que ora vestia, ora estava no banco de traz do carro. Uma vez não consegui manobrá-lo para que um caminhão carregado de lixo pudesse irromper no pátio. Disparava alarmes em toda a tentativa de manobra feita. Ela trazia para nós roupas sempre muito boas. Mostrava-se sempre eclética nos diversos tipos de assuntos que eventualmente eram abordados. Falava de políticas públicas, de creches, escolas de qualidade para os filhos dos pobres. Falava de saúde pública, provocava-nos falando de traições nos relacionamentos afetivos, defendia publicamente os homossexuais e a possibilidade de uniões formais estabilizadas.
Frequentemente apareciam moradores de rua no galpão e com eles os problemas. Pirulito apareceu em julho, pleno inverno garoento, procurando trabalho. Com aparência de menino, não tinha 30 anos. Sorriso tímido que realçava a beleza do olhar. Comeu muito naquela noite. A comida sempre era muito abundante – arroz, feijão, algum pouco de molho sempre se encontrava -. Num canto do refeitório improvisado, dormiu sob montanhas de plástico mole e caixas de papelão. É muito difícil deixar de ser morador de rua. Deixa a rua, mas a sua cabeça continua na insegurança dela. Tem medo de tudo. É perceptível em coisas aparentemente simples: não consegue separar-se de sua faca, de seus parcos pertences, come tudo o que pode em cada refeição, não sabendo do destino que o espera para o outro dia.

A bondosa e elegante mulher nunca escondeu a sua afeição por Pirulito . No galpão brincávamos: “ela gosta de balas e pirulitos”. Pirulito se fazia charmoso e discreto. Acordava às 5 da manhã, fazia halterofilismo com uma barra de ferro, nas pontas tinha latas usadas de tinta, cheia de concreto. Cada levantada era motivo para um gemido dolorido. Banho tomado, barba feita, depois do café, ou melhor; comia tudo que sobrava da janta com o café; saía Pirulito, feliz com seu carrinho na direção ao centro da cidade. Era forte. Às quintas-feiras, saía depois das 17 horas, mais bonito do que nunca , voltando lá pelas 6 da manhã do outro dia. Nas sextas, recebia a partilha e sumia. Voltava no domingo, sempre depois da meia noite, de banho tomado, e cheiroso como sempre. Surpreendia a todos o capricho da roupa simples que usava. Sempre bem passada, e combinando. Muitas noites o encontrei recendendo fragrâncias maravilhosas que dizia sempre, ser de procedência francesa, e jurava de pé junto que encontrava no lixo.

Numa tarde chata de domingo no Shopping ao estacionar o carro, enxerguei o juiz dentro de seu elegante automóvel. Abanou-me gentilmente num convite para que fosse ao seu encontro. Assistia um filme italiano em DVD portátil, com moderníssima tela de cristal liquido. “Enquanto elas compram, a gente se diverte como pode”, falou-me sorridente.
Em um daqueles recantos do shopping center, ao som de um pianista escabelado, estava o Pirulito namorando. Tomado por um misto de admiração e susto, discretamente disfarcei e me movimentei em direção a livraria próxima, olhei computadores, sapatos, tomei café... E tomado por uma curiosidade inquieta voltei, e através da vitrine vi que lá continuavam, como que encantados um pelo outro. Entrei na primeira sala de cinema que encontrei. Foi a sessão mais longa que assisti em toda a minha vida. Tomara que ao escrever esta memória, como numa psicanalise, se afaste de mim aquela imagem que me persegue, esgotando-me na tentativa de compreender a vida, os amores e suas mais diversas formas de manifestações.
Na quarta-feira, como sempre, a médica sorridente e jovial, distribuía beijos e balas aos trabalhadores, e falando "time to tea" convidou-nos para o chá, enquanto Pirulito muito suado e sujo, aparecia carregado de coisas que a cidade acabava de descartar. Após descarregar o carrinho, sumiu para reaparecer poucos minutos depois, de banho tomado e cheiroso como sempre. A nossa frente, ao vê-lo, desembrulhava um discreto sorriso.

Pedro Figueiredo
maio de 2009

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