17 de mar. de 2009




Os ossos do Juvenal



Isto aconteceu já faz tempo. Nos tempos de nossa juventude. Tempos em que tínhamos a certeza que faltava muito pouco para fazermos a revolução; onde as pessoas e o mundo seriam transformados em um ninho de justiça e de alegria. Numa sexta-feira a noite, dois meninos esbaforidos invadiram nossa casa. De tão cansados eles não conseguiam falar. Depois de tomar água, e muita insistência nossa para que se acalmassem, começaram: “vai lá em nossa casa, o diabo entrou no corpo do nosso pai. Vamos lá, vamos lá...”.
Por becos escuros saímos também esbaforidos. Empurrados por um misto de ansiedade e curiosidade, corríamos na direção da dita casa onde o demônio resolveu fazer sua morada. Muita gente na frente. Como os barracos estavam um quase em cima dos outros, todo mundo aglomerou-se em frente da moradia sinistra. Deixaram suas casas, seus afazeres de um rotineira noite de sexta-feira: as carnes graxozas já cheiravam queimadas, mistura de sons sertanejos variados, mulheres no meio de suas maquiagens, alvoroçavam-se em disparatados comentários, sem falar na cachorrada que desinquietas, circulavam entre as pernas dos curiosos assistentes.
Urros satânicos eram ouvidos já de longe. Os comentários ao longo do beco que percorríamos com certa dificuldade, eram variados: Um velho de barba mal feita contava acontecimentos semelhantes, de gente que uma vez “possuídos” das orelhas vertiam sangue, e que em contato com a terra transformavam-se em líquidos mal cheirosos, afirmava de forma categórica ser o cheiro do diabo: o puro cheiro do enxofre. As crianças, bem, as crianças faziam a festa! Confesso que não vi em nenhum daqueles olhinhos sinais de apavoramento.
Quando entramos na sala, sem exagero, estava totalmente lotada. Os urros vinham do quarto, separada da sala por lençol. A cozinha era uma pequena varanda e parecia que a porta era feita de muitas cabeças, todas de mulheres alvorotadas.
Enfim, entramos no quarto. A cena era inacreditável. As pessoas soavam, pelo excesso de calor, os cabelos colavam ao rosto de mulheres que circundavam ao redor da cama. Um homem, relativamente gordo, de pele morena, encontrava-se de calção, atado pelas mãos e pés. Com pernas e braços abertos amarrados, tomava conta da cama toda. A frágil cama de madeira era golpeada, com o que restava do corpo solto. Uma espécie de transe começou a tomar conta de mim. Tinha uma sensação de que estava sonhando, ou flutuando. Não podia ser verdade. Aos pés da cama, um mulher jogava sal no pobre corpo, e sua boca estava cheia de “colas de lagarto” para uns, ou “espadas de São Jorge” para outros. Da boca diabólica vertia uma espécie de espuma, esverdeada pela plantas invasoras.
Recompondo o primeiro impacto, pedi silêncio. O silêncio prontamente aconteceu. Peguei das mãos da mulher o frasco que dele era jogado o sal. Num daqueles lances de espírito que nunca se saberá de onde sai, comecei a jogar sal pela cabeça da população que habitava aquele pobre quarto. Lembro que algumas mulheres se benziam com o sinal da cruz. Pedi para uma mulher que passava álcool em seus braços que tirasse as plantas daquela pobre e dilacerada boca. Assim foi feito. O silêncio se fez total por parte das participantes/assistentes. Somente o corpo amarrado e o ringir da velha cama ainda não se aquietavam. Pedi para que todos dessem as mãos e rezássemos um Pai Nosso. Confesso que foi o mais fervoroso Pai-Nosso que já ouvi rezado. Pedi calmamente que o desatassem. Alguém retrucou com medo que se suicidaria. Me deu medo. Confiante, novamente pedi. Não aconteceria nada, tinha muita gente em volta da cama, da casa, no beco. Desamarrado lentamente foi. De repente o homem deu um pulo na cama, e sai caminhando cabisbaixo como quem procura alguma coisa em direção a porta da rua. Uma vez no pátio, pelo portãozinho de madeira tomava o beco, e como num corredor polonês, olhares tristonhos e curiosos o espreitavam. Ele não falava, caminhava entre luzes e sombras, parecia que olhava os rostos e o chão, sem vê-los.
Terminado o cordão de assistência, começou a correr. Correu desesperadamente gesticulando os braços freneticamente. E lá fomos nós, muitos de nós, novamente correndo atrás do atormentado homem. Ele corria, como que não sabe para onde vai e nós também. Corríamos. Tomou a direção do cemitério dos pobres da Santa Casa, do qual se falavam estórias de coisas nunca vistas. Com certeza nunca vistas mesmo.
Ao chegar em frente do portão gigante, tentou subir, e não conseguiu. Tirou do pescoço um cordão e joga para dentro do cemitério. Escalou, finalmente, o muro ao lado de mais de dois metros de altura. Enquanto gritava coisa que não se entendia, escalamos também, restando apenas três dos nossos no chão. Uma vez no topo, olhando aquela imensidão de cruzes silenciosas, como que desencantados, empreendemos a difícil descida. O homem senta no chão e começa um choro convulsivo. Aos poucos se refaz. O necessário silencio se fez. Calmamente começou falar. A falar como alguém que não tem ninguém a sua frente.
Juvenal, seu velho pai veio para cidade grande junto com o último filho dos quatro que já estavam na capital. Antes de morrer pediu que não o deixasse sepultado longe da sua família, de seu povo na pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul. Quando da data de seu falecimento, os filhos todos muito pobres, não tiveram condições de sepultarem o pai como lhes havia pedido. Quando completou-se o tempo para transladar os restos mortais do velho Juvenal, voltaram ao cemitério para uma segunda tentativa. Chegaram a conclusão que não teriam condições novamente. Alem da dor de todos estes movimentos impotentes, era muito caro os gastos com o cemitério, e emperrava numa burocracia inacreditável. Assim começava a segunda parte da história. Em conversa com amigos, os filhos foram informados que subornando o coveiro, era possível resgatar o que restava do corpo do pobre Juvenal. Assim foi feito. Rateio suado, pagaram o coveiro corrupto, e a mala foi deixada no lugar e na noite combinada. Entretanto, na madrugada quente daquele verão malandro, como acertado foi, a mala, com os ossos do velho Juvenal lá não se encontravam. Misteriosamente desapareceram, ou nunca lá foram colocados.
Naquela sexta feira, depois da tradicional cachacinha de final de tarde, ao homem moreno, de calção e levemente gordo, apareceu o velho Juvenal, dizendo a ele que jamais descansaria longe de sua gente e de seu pobre povo. Ao pobre e coitado filho imputou-se , a culpa da tragédia cultural de uma geração miserável, desgarrada da terra, vivida no lamacento chão das periferias de nossa capital, e enterrados em valas comuns, longe de seus entes queridos.


Pedro Figueiredo
Setembro 2008

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