11 de out. de 2009


Os filhos do Brasil



Pelo bem e pelo mal, no mundo todo é reconhecida a fama dos meninos e meninas do Brasil. Quando tem em seus pés uma bola de futebol, de Ronaldinho a Marta estão entre os melhores do mundo. Certa vez um cronista esportivo comentando o desempenho de um determinado jogador brasileiro, falava que parecia que seu cérebro situava-se em seus pés e pernas, pelas “habilidades mágicas” com que se relacionava com seu instrumento de - lazer - trabalho. Assim, os meninos do Brasil são exportados por experts em detectar talentos, cujos cérebros são hospedados por canelas e coxas formidáveis. Já houve casos de levarem a família toda para a Alemanha, para aperfeiçoamento do talento precoce. O tempo passa rápido e na maioria das vezes os meninos voltam à pátria amada ainda tenros em idade, com tornozelos e joelhos irreversivelmente quebrados, tendões arrebentados e com as mais diversas formas de avarias, ligadas a lógica da maximização do potencial adolescente. Outros tantos voltam gordos e famosos, falando os mais diversos tipos de asneiras, próprio de quem tem realmente o coração e a inteligência nas pernas e pés. Nelas, além do cérebro foram usadas suas almas por um sistema utilitarista e desumano.
Os meninos e meninas do Brasil foram matérias de capa nos jornais do mundo todo quando o pequeno Tiago foi morto, depois de ser arrastado por vários quarteirões por um carro de bandidos nas ruas do Rio de Janeiro. Eles foram lembrados também quando Isabela, a menina de classe média paulistana foi jogada – num limite indecifrável entre covardia e loucura - pela janela do prédio pela madrasta, com a cumplicidade do pai. Alguns menos otimistas arriscam afirmar o contrário. O mundo também não esqueceu da conhecida Chacina da Candelária na década de 90 no Rio de Janeiro.
Para pousar semi-nuas as meninas do Brasil, com anúncio nas mãos, disputam lugar em filas intermináveis no tira teima “de quem será a mais gostosa” para ter sua foto publicada na página central do mais chulo de todos os tablóides conhecidos da província. Seus records de venda só se assemelha “a números escandinavos de leitores”, gaba-se o empresário tirano. Um dos poderosos proprietários das senzalas modernas do século XXI.
Os meninos e meninas do Brasil dormem em esteiras de papelão, enrolados em sacos plásticos nas esquinas das cidades velhas de nossas capitais, entorpecidos pelo crack, a droga dos pobres, que hoje invade aos condomínios da classe A. Graças a Deus que bateu nestas outras portas, por que assim a elite se mobiliza, denunciando as mazelas que contamina multidões de miseráveis, e uma pequena parcela de bem nascidos. Enquanto a dengue, o mal de chagas e outras tantas doenças tropicais não baterem nestas “outras portas” continuarão morrendo pobres a rodo nas periferias e rincões esquecidos do Brasil
As meninas do Brasil, que vendem o corpo por trocados para sustentarem suas famílias, fazem parte da mesma lista de chagas consagradas da Pátria Amada. De norte a sul, a crueldade ronda seus dias – e noites. Os sofrimentos e dramas são exatamente os mesmos. Os gringos que as negociam no mercado - mercado - charmoso de Copacabana são caudatários culturais da mesma elite imunda, que perpetuou a extorsão secular na terra verde-amarela. No Rio são alemães, suecos, americanos. No norte, são franceses que através das fronteiras da Guiana, fazem voar as meninas do Brasil, em vôos sem retorno, para boates e bordeis de luxo espalhados pela Europa toda. São da mesma origem as meninas de lá e de cá. As meninas do centro velho de Porto Alegre são as mesmas dos bordeis de São Luiz do Maranhão, sede da dinastia Sarney. (Fala-se que os ruídos saídos de não sabe donde, nos dias do chá dos acadêmicos, seria Machado de Assis gritando que chutasse pra fora esse capitão do mato safado, coronel patético e asqueroso).
Os meninos e meninas do Brasil que vendem guloseimas nas filas dos ônibus urbanos, em praças e ruas de nossas capitais, são os mesmos que se assam nas carvoarias do centro-oeste brasileiro, preparando seus esturricados dias como mão de obra barata – escrava - do latifúndio mesquinho e insolente. De perfil idêntico são os meninos e meninas que aos doze anos se envenenam, ajudando seus pais a aumentar a renda familiar, classificando a folha envenenada de tabaco nas regiões fumageiras do estado gaúcho, com o falacioso argumento de que é preciso trabalhar cedo para ser gente grande responsável. Pena que esquecem, que os outros meninos e meninas, filhos de “outras portas”, exatamente nesta mesma idade, encontram-se em laboratório de línguas, treinam ginástica olímpica em ambiente climatizado, ou brincam com seus vídeos-games de última geração em bibliotecas recheadas do quem tem de melhor da literatura universal. Não precisa dizer de onde sairão os príncipes do judiciário que decidirão o destino do latifúndio criminoso, do crime do colarinho branco, da evasão de divisas...
As meninas e meninos do Brasil, são as multidões de lindos e macios rostos, vitimados por um estado omisso e corrupto que, nega os equipamentos básicos para uma aprendizagem decente, aviltando educadores com salários vexatórios, sobrecarga desumana de trabalho e condições horripilantes para o bom desempenho da arte de construir corações e cérebros, que pensem o Brasil de um outro jeito. Os meninos e meninas do Brasil, fruto deste sistema educacional decadente, são os mesmos que se agrupam nas esquinas das periferias, consumindo as tolices da rima pobre do hip-hop ao funk, cultura importada, consumida majoritariamente por quem não teve a oportunidade de conhecer aquilo de bom, que ao longo da história produzimos.
Os meninos e meninas do Brasil são aqueles filhos de todas as cores, que nas sinaleiras nos “achacam”. Portadores de uma impotência desmedida, que num misto de vergonha e medo não sabemos como comportar-nos diante do sofrimento de compatriotas inocentes. Verdadeiros estrangeiros na terra que os fez despertar para uma vida de tormentos incontáveis e frustrações irrecuperáveis.
Os meninos e meninas do Brasil são aqueles que boquiabertos somos alertados pelas mídias sensacionalistas quando se rebelam – qual vulcão adormecido vomitando torrentes de fogo - nos porões da vergonha nacional das antigas FEBENs, maquiadas por sucessivos pseudônimos. Amontoados, lá se encontram as multidões de adolescentes pardos, ou “cinza” que na nomenclatura reflexiva de Tiburi, - filósofa gaúcha -, tenta re-enquadrar nossa antropologia etnográfica.
Os meninos e meninas do Brasil são os milhares que se amontoam em escolas containers, tentando aprender lições que nada falam de suas vidas. Os meninos e meninas do Brasil, são as centenas de sem-terrinhas das Escolas Itinerantes do MST, que lhes foi negada no RS a oportunidade de pensar a sua educação a partir de sua realidade de deserdados da terra.
Os meninos e meninas do Brasil são os filhos de Elton Brum que contemplam o pai lutador, covardemente assassinado pelas costas, a mando de um governo que se notabiliza por feitos truculentos e corruptíveis até então nunca vistos na província.
Tomara que “que nossas façanhas – não – sirvam de modelo ao toda a terra”, como reza a conhecida impáfia positivista gaúcha.

Pedro Figueiredo. Setembro 2009


* * * *



O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, “democracia racial”, raramente percebem os profundos abismos que separam os estratos sociais. O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade. O povo-massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido. Inclusive o dom de serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos e, invariavelmente, imprevisíveis

Ribeiro, Darcy . O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil / São Paulo : Companhia das Letras, 1995

8 de ago. de 2009



O gari e a bela de saltos


Um buzinaço estridente chamou a atenção dos que passavam no calçadão da classe média empobrecida do degradado centro da capital. Tentando equilibrar-se nos altos saltos, a bela saltou do carro que dirigia, gritando descontroladamente. Aglomeravam-se os que passavam na lateral da praça. Os trabalhadores da farmácia, dos restaurantes da volta eram os assistentes privilegiados. A negra Maria passadeira da lavanderia, que passa todo o dia enquanto vê os que passam, na ponta dos pés tentava também entender o que acontecia. Todo mundo tentava entender as causa e o desfecho do destempero da perua barulhenta.
Em frente ao portão de sua garagem, um insensível gari resolveu estacionar o seu carro. Tratava-se daqueles carrinhos, empurrados por homens e mulheres, que circulam pelas ruas de todas as cidades do mundo, no qual se recolhe o que diariamente a sociedade de consumo descarta.
Certa vez ouvi dizer que na Europa dificilmente encontra-se um europeu empunhando um. Em França por exemplo seriam os argelinos. Na Espanha os marroquinos. Na Alemanha os Turcos, enfim, os africanos do norte. Nos Estados Unidos os latinos com preferência para os mexicanos. No Brasil e nos países que eles resolveram chamar de terceiro mundo, evidentemente são os pobres, os muito pobres que desempenham a sagrada tarefa de limpar aquilo que os outros sujam. Sagrada, pois já pensaram na possibilidade de toda esta categoria de silenciosos operadores da limpeza urbana, resolverem cruzar os braços um dia e parar de fazer o invisível trabalho?
Ao som do buzinaço desconcertante, os que passam param, talvez pensassem que a perua bela, teria descansado por descuido seus gigantes e postiços peitos!? ao volante de sua “máquina de voar”. Ao descer com seus elegantes saltos, vendo que conseguiu aglutinar curiosos, fez uso de outro instrumento para chamar a atenção da pequena multidão e do surdo gari. É a partir daí que os assistentes curiosos, com certeza tiveram dúvidas do que seria mais imundo: o interior do carrinho estacionado, ou aquele orifício de colorido esquálido, - entre comentários na pequena multidão - que perfeitamente poderia confundir-se com o outro orifício do corpo humano, que adequadamente expele gazes e outras “cositas mas”.
O gari subia a ladeira lentamente com seus instrumentos de trabalho. O boné que lhe cobria a fronte não deixava ver o que lhe aguardava. Seus fones de ouvidos os poupava dos impropérios que a ele eram dirigidos e que a pequena multidão (atônita) escutava. Atônita nem tanto. Havia posicionamentos na pequena multidão. Os contra, os a favor e aqueles que de tudo tem motivo para fazer uma gracinha: “eles são todos assim”, outros relatavam acontecimentos de uma “total insensibilidade desse tipo de gente” ou “não vai estragar o salto, gostosa”... enfim, se ouvia de tudo um pouco no meio da pequena multidão.
O anonimato fornece a química da reação. É mais fácil, mais cômodo falar ou dizer coisas que numa platéia familiar jamais se diria ou faria. Bendito ou maldito aglomerado urbano, anônimo, indiferente, onde se pode fazer tudo aquilo que sempre se desejou fazer por não ter oportunidade ou coragem suficiente. Do apimentado dos amores, aos sonhos recalcados ou adiados. No meio das grandes e pequenas multidões quase tudo é permitido. Nas praças, nos cinemas ou nas tumultuosas avenidas, são lugares atávicos para deleites saborosamente proibidos. Contraditoriamente, o mesmo aglomerado anônimo, favorece os crimes hediondos de horrores até nunca experimentados pela humanidade. Desde o assalto do pivete desnutrido que alimenta a rede do crime organizado, a prostituição infantil, a pedofilia, o assalto relâmpago tão em moda hoje nas grandes capitais.
Ao olhar para as pessoas que assistem a sena, o gari se pergunta por que a bela de altos saltos xinga com tanta veemência aquele grupo?
A “surdez” do gari não o deixa compreender que ele era o centro de toda a confusão. Na lentidão dos passos, - para surpresa de todos - junta-se a pequena multidão. Também queria participar do ato. Tira um fone, escuta... Tira o outro... escuta outro pouco... de repente, à semelhança de um sapo, estala os olhos, seu rosto se inunda de verdadeira pane. Alguém acorda-o de seu torpor falando gritado:
- Ela está xingando você!
Num misto de surpresa e indignação pergunta:
- Hã, Eu!? Todo mundo ri. Enquanto isto, a bela de saltos altos caminhava em sua direção, com dedo em riste. O gari se encolhe, mas não tinha jeito, a saraivada continuava.
Certa vez, um pesquisador resolveu trabalhar sobre a invisibilidade deste tipo de trabalhadores. Ao invés de computadores, livros, livros e canetas, pá, vassoura, rodo e pano de chão foram seus instrumentos de pesquisa, reflexão e elaboração na universidade onde estudava. Anonimamente ao lado de dezenas de outros trabalhadores durante um mês inteiro trabalhou. “Ninguém vê a gente”, ele afirmava. “Eu tinha a impressão que era como um vulto que entrava nas salas e andava pelos corredores”. Durante o mês que trabalhou o seu turno como limpador de chão, de carteiras e banheiros, apenas duas pessoas de suas relações na universidade o reconheceram. Não o reconheceram por que nunca olharam em seu rosto, em seus olhos... Este tipo de trabalhador no olhar de determinados estratos sociais, são como vultos que se movimentam, num mundo onde as pessoas são treinadas para ver/perceber coisas, artefatos bem determinados. Geralmente bens em vista do consumo, que possam ser adquiridos, manipulados e descartados. Ninguém olha para este tipo de gente que muito pouco ou quase nada pode oferecer, diante daquilo que nos treinaram entender como útil.
– Nunca mais deixe essa imundice aí, - encerrando a cena - gritava a linda de saltos altos. É a 3ª vez que isto acontece. Você não sabe que aqui é a garagem do condomínio, onde moram 60 moradores? Da próxima vez vou chamar a polícia para que tire essa droga daí. Sem nada falar, o gari deixa o grupo, - que num lapso de segundos pensou fazer parte - atravessou a calçada, tirou o carrinho da entrada da garagem e deu continuidade na sua obra de limpar a cidade. Na dispersão da pequena multidão, também me dispersei, pelas ruas da cidade antiga. Mas uma pergunta até hoje martela meu pensar inquieto: até quando os garis serão xingados, o Pataxó queimado vivo nas ruas de Brasília e os meninos da Candelária chacinados...?

“...porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não teriam uma segunda oportunidade sobre a terra.”
Com estas palavras, o escritor colombiano Gabriel García Márquez termina o seu romance Cem anos de solidão.


PEDRO FIGUEIREDO


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10 de mai. de 2009



Traições tolerantes
- histórias de um tempo em que
tentávamos reciclar gentes e coisas -

III


Os ratos vinham daquele lado. Eles eram muitos. De todos os tamanhos. Iam e voltavam, tornavam a passar novamente. Faziam rápidas paradas, uma olhadinha e assustados, continuavam o caminho. Passei muitos dias depois pensando sobre o “ser rato”. Pareciam querer brincar de esconde-esconde comigo. Interessante que naquele dia não senti o asco habitual que a maioria dos humanos sentem destes aparentemente "inofensivos" animaizinhos. São exatamente um igual ao outro. Existem os grandes, outros menores, mas todos eram igualzinho ao outro. A cor, o formato dos olhos, os pelinhos da boca, enfim.
Ao mesmo tempo, o lixo sem trégua era colocado aos montões em cima da mesa de trabalho. Rapidamente, a montanha era como que engolida por oito trabalhadoras, que na mesa se escoravam, tentando descansar as pernas.
De baixo do viaduto foi que conheci a família dos Machado. Odete a matriarca. Alaor e Terezinha, eram seus dois filhos. Os três organizavam a vida daquela pobre gente, naquele viaduto, que por debaixo de sua função de ponte, tornou-se galpão de Reciclagem.
Os três viventes, eram o retrato do pardo brasileiro. Não eram negros, não eram brancos, não eram índios, eram os brasileiros. Em suas bocas, muito poucos dentes. O cunhado de Alaor, genro da Odete, esposo da Terezinha, chamavam-no de Caco. O Caco, um retaco grosseiro e agressivo se confundia com a grossura de seu tórax peludo e sujo. Sua função naquele escuro “galpão“, era garantir a mesa de trabalho sempre bem abastecida de lixo para que o trabalho não fosse interrompido.

Canhoto era o pai do desdentado Alaor e da Terezinha, marido de Odete. Foi jogador de futebol da IIª divisão numa cidadezinha do interior do Paraná na década de 70. Foi uma das primeiras gerações de craques que fizeram do futebol profissão e que graças a Odete, ao dependurar as chuteiras, tinha conseguido comprar um pequeno apartamento na rua Paraiba entre as Avenidas Farrapos e Voluntários da Pátria. A depressão pós fama levou Canhoto a beber, e o misto entre jogatina e prostituição papou o apartamentozinho. Quando Canhoto morreu, os quatro já moravam entre os abrigos públicos e as praças da cidade. O viaduto agora, era a casa da família e lugar de trabalho. Descobriram no lixo e nos co-irmãos de infortúnio uma forma de ganhar a vida.

Alguns anos antes, numa dessas esquinas do tempo, entre latinhas de alumínio, caixas papelão e pet, Alaor encontrou Caco, pelo qual se apaixonou perdidamente. Caco foi morar em sua casa, no viaduto.
Naquele dia encontrei Alaor que acabava de sair do pronto socorro meio sonolento de tantos analgésicos tomados e injetados. Encontrava-se com o braço enfaixado – tratava-se segundo ele, de uma dentada humana de grandes proporções – e com tom rude na voz, vociferou: “ele me traiu, um dia vou matá-lo”. Perguntei de quem se tratava e tive como resposta “não perde nada por esperar”. Calei-me. Alguns meses depois, encontrando Terezinha grávida pela rua e perguntando a procedência da orgulhosa barriguinha que exibia, respondeu-me: “o Caco vai ser papai”. Só então entendi a causa de braços dilacerados e juramentos de morte. Muito raramente voltei a encontrar Caco no viaduto/residência.
Num domingo de primavera encontrei Caco e Terezinha numa modesta barraquinha de camping curtindo o baby e namorando no Parque Harmonia às margens do rio Guaíba, longe dos desejos raivosos de Alaor. Soube deles, que já faziam dois meses que aos fins de semana repetiam a mesma escapadela.


O rodízio das trabalhadoras era intenso debaixo do viaduto. A exploração era assustadora. Mulheres miseráveis trabalhavam a semana toda, mas ao vender seu material, praticamente não tinham nada a receber. Iam todas embora. Ou melhor, a Odete mandava-as embora. Na outra semana vinha uma nova leva para a mesma liturgia. Qualquer possibilidade de reação: a ameaça funcionava. Lá ia embora aquele grupo, e na segunda feira pela manhã, se encontrava um grupo completamente diferente. Assim passavam-se os dias. Alaor se comunicava muito bem, mobilizava simpatizantes, atava parcerias e a solidariedade chegava. A geladeira nova doada – patrimônio coletivo - tinha cadeado na porta, e o fogão exibia um cartaz maroto: “proibido o uso”. As trabalhadoras comiam na rua, na pobre marmita fria.

Certa vez descobri Alaor dormindo numa pensão próxima ao viaduto/galpão. A prefeitura pagava. Alaor não deixara de ser um morador de rua. Junto com Alaor saía também, da mesma pensão um jovem alto, boa pinta, de olhos azuis, dizendo-se também ser morador de rua e colega de pensão. Falava com desenvoltura de qualquer assunto apresentado, não demonstrando nenhuma das conhecidas característica de um morador de rua tradicional. De quando em vez, encontrava-o no galpão dando sugestões, muitas vezes vi discutindo com a família dos Machado, eficácia na gestão do empreendimentos, preços de produto, a exploração de atravessadores e a possibilidades de ampliação do negócio, etc.. Logo começou-se a perceber através das pessoas mais próximas que o jovem e bonito rapaz tratava-se de um novo namorado de Alaor.

A reunião começou já passava das vinte horas. Fui convidado para dar uma contribuição a um grupo de empresários e entidades da sociedade civil de um bairro nobre da capital, sobre como eles poderiam contribuir na ajuda desta categoria de trabalhadores. Muita conversa como sempre nestes tipos de reunião e de público, análises de todo o tipo, depoimentos, ponderações. Enfim a reunião termina, como sempre, cheia de bons propósitos, enquanto as pessoas começam a despedirem-se uma das outras. É neste momento de uma certa sonolência no ar, que se apresenta o neto de uma bondosa senhora que a levaria de volta pra casa. Surpreendentemente tratava-se de um elegante jovem alto, de olhos azuis de muita boa pinta. Discretamente fui ao banheiro e lá permaneci os mais longos cinco minutos de minha vida, mas com um juramento feito: um dia contarei as histórias das traições tolerante, nos tempos em que tentávamos reciclar gentes e coisas.
Pedro Figueiredo
maio de 2009

Traições tolerantes
- histórias de um tempo em que
tentávamos reciclar gentes e coisas -

II


Uma bondosa mulher. Medicina sua profissão, visitava o galpão de reciclagem todas as quartas-feiras no fim da tarde. Juiz de direito era seu companheiro, homem grisalho, sem sorrisos nos lábios e de face tensa, que nem sempre chegava com ela. Falando em inglês, brincava: “time to tea”. Beijava distraidamente cada um que encontrava. Lembro sempre de seu andar esbelto, olhos claros, discretos, mas sua pele denunciava seus mais de 50. Sempre carregava balas na bolsa, nos bolsos do jaleco, que ora vestia, ora estava no banco de traz do carro. Uma vez não consegui manobrá-lo para que um caminhão carregado de lixo pudesse irromper no pátio. Disparava alarmes em toda a tentativa de manobra feita. Ela trazia para nós roupas sempre muito boas. Mostrava-se sempre eclética nos diversos tipos de assuntos que eventualmente eram abordados. Falava de políticas públicas, de creches, escolas de qualidade para os filhos dos pobres. Falava de saúde pública, provocava-nos falando de traições nos relacionamentos afetivos, defendia publicamente os homossexuais e a possibilidade de uniões formais estabilizadas.
Frequentemente apareciam moradores de rua no galpão e com eles os problemas. Pirulito apareceu em julho, pleno inverno garoento, procurando trabalho. Com aparência de menino, não tinha 30 anos. Sorriso tímido que realçava a beleza do olhar. Comeu muito naquela noite. A comida sempre era muito abundante – arroz, feijão, algum pouco de molho sempre se encontrava -. Num canto do refeitório improvisado, dormiu sob montanhas de plástico mole e caixas de papelão. É muito difícil deixar de ser morador de rua. Deixa a rua, mas a sua cabeça continua na insegurança dela. Tem medo de tudo. É perceptível em coisas aparentemente simples: não consegue separar-se de sua faca, de seus parcos pertences, come tudo o que pode em cada refeição, não sabendo do destino que o espera para o outro dia.

A bondosa e elegante mulher nunca escondeu a sua afeição por Pirulito . No galpão brincávamos: “ela gosta de balas e pirulitos”. Pirulito se fazia charmoso e discreto. Acordava às 5 da manhã, fazia halterofilismo com uma barra de ferro, nas pontas tinha latas usadas de tinta, cheia de concreto. Cada levantada era motivo para um gemido dolorido. Banho tomado, barba feita, depois do café, ou melhor; comia tudo que sobrava da janta com o café; saía Pirulito, feliz com seu carrinho na direção ao centro da cidade. Era forte. Às quintas-feiras, saía depois das 17 horas, mais bonito do que nunca , voltando lá pelas 6 da manhã do outro dia. Nas sextas, recebia a partilha e sumia. Voltava no domingo, sempre depois da meia noite, de banho tomado, e cheiroso como sempre. Surpreendia a todos o capricho da roupa simples que usava. Sempre bem passada, e combinando. Muitas noites o encontrei recendendo fragrâncias maravilhosas que dizia sempre, ser de procedência francesa, e jurava de pé junto que encontrava no lixo.

Numa tarde chata de domingo no Shopping ao estacionar o carro, enxerguei o juiz dentro de seu elegante automóvel. Abanou-me gentilmente num convite para que fosse ao seu encontro. Assistia um filme italiano em DVD portátil, com moderníssima tela de cristal liquido. “Enquanto elas compram, a gente se diverte como pode”, falou-me sorridente.
Em um daqueles recantos do shopping center, ao som de um pianista escabelado, estava o Pirulito namorando. Tomado por um misto de admiração e susto, discretamente disfarcei e me movimentei em direção a livraria próxima, olhei computadores, sapatos, tomei café... E tomado por uma curiosidade inquieta voltei, e através da vitrine vi que lá continuavam, como que encantados um pelo outro. Entrei na primeira sala de cinema que encontrei. Foi a sessão mais longa que assisti em toda a minha vida. Tomara que ao escrever esta memória, como numa psicanalise, se afaste de mim aquela imagem que me persegue, esgotando-me na tentativa de compreender a vida, os amores e suas mais diversas formas de manifestações.
Na quarta-feira, como sempre, a médica sorridente e jovial, distribuía beijos e balas aos trabalhadores, e falando "time to tea" convidou-nos para o chá, enquanto Pirulito muito suado e sujo, aparecia carregado de coisas que a cidade acabava de descartar. Após descarregar o carrinho, sumiu para reaparecer poucos minutos depois, de banho tomado e cheiroso como sempre. A nossa frente, ao vê-lo, desembrulhava um discreto sorriso.

Pedro Figueiredo
maio de 2009

Traições tolerantes
- histórias de um tempo em que
tentávamos reciclar gentes e coisas -

I

Virginia negra bonitona e vistosa, chegou em Porto Alegre há 30 anos atrás na boleia de um caminhão carregado de aipim, oriunda de um quilombo no interior de São José do Hortêncio. Foi parar num conhecido bordel da Voluntários. Depois de muitas perguntas sobre sua saúde, revisão dos dentes, a escalaram para acompanhar um fazendeiro que vinha visitar seu filho que estudava na capital. Depois daquela noite, experimentou todos os tipos de noites e as mais indiscritíveis formas de desejos. Teve 5 filhos. Criou todos atrás do Morro da Polícia. A noite foi sempre sua companheira. Seus prazeres, seus trabalhos. Certa vez me contou que cozinhava num daqueles restaurantes que varam a noite entre a Voluntários e a Farrapos, a serviço da prostituição noturna. A filha, já crescida vendeu sua casa e sumiu. Com as duas netas, varizes nas pernas, poucos dentes na boca, Virginia foi morar na marquise da estação do metrô Mercado. Nas últimas noites, antes de chegar no galpão de reciclagem, varria as ruas da capital pela madrugada. As netinhas foram recolhidas e acabaram morando num abrigo de meninas no Bairro Santo Antonio.
Quando cheguei pela manhã na segunda feira no galpão, ela já tinha limpado tudo. Pátio, banheiros, panelas...
Os dias passavam enquanto Virginia mancava silenciosa e obediente, trabalhando o dia todo. Era pau prá toda a obra. A todos servia. Benzia e na mesma hora recomendava o chá adequado.
Com o passar do tempo, Virginia foi ficando triste e encontrávamos chorando pelos cantos. Dolores, a chefona do Galpão se ofereceu para levá-la ao médico. Diagnostico: depressão. Dolores comunicou numa rápida reunião: Virginia precisava ir ao psiquiatra todas as quintas-feiras pela tarde. Dolores, de pronto, repassou suas responsabilidades da mesa de triagem às outras companheiras de trabalho, e lá ia Virginia, visivelmente contrariada, choramingando, quase de arrasto para a consulta com o "maldito psiquiatra". Sol causticante, garoa gelada. Dolores puxava Virginia... lá iam elas, dobravam a esquina e se perdiam entre multidões de carros fumacentos e pessoas endoidecidos da esfarrapada Voluntários.
Benedito era o companheiro de Dolores, pessoa de perfil dócil e afetuoso. Dolores, mulher de personalidade forte e fogosa, a todos envolvia com suas iniciativas. Mandava e desmandava naquele grupo de miseráveis do galpão que alí se amontoavam pela necessidade de teto, comida e afeto.
De vez em quando Benedito me entregava, cartas enormes, pequenos bilhetes, que ele escrevia secretamente declarando seu amor incondicional por Dolores. Muitas e muitas vezes me surpreendi, sugerindo que trocasse palavras, adocicasse termos, invertendo-os, propiciando musicalidade ao texto. “Ela é linda, Pedro”, “veja como ela é doce”, ou “Deus é bom, meu deu este presente”. Bom pai, os filhos adoravam Benedito. Adoçava o leite do jeitinho que o filho pedia, fritava pasteizinhos de goiabada no domingo de manhã levando na cama para o café com Dolores. Numa noite de sábado, apareceu com Dolores no colo em meu quarto, falando em seus olhos diante de mim, de como o amava.
Naquela tarde de quinta-feira com os olhos arregalados apareceu Benedito na porta: “Um homem acaba de telefonar dizendo que Virginia passa mal em um banco da Praça da Alfândega“.
Lá Benedito foi encontrar Virginia, que chorava ao ombro de um dedicado office-boy que num impulso solidário acompanhou os acontecimentos sem muito compreender. O compadecimento juvenil entrou em ação ao ouvir seus gritos de socorro, ao ver sua bengala ser jogada fora por um casal de namorados no meio dos arbustos da praça. Foi dele que Benedito recebeu o telefonema assustador.O office-boy quase que entregando Virginia ao homem que chegava, saiu de fininho, apavorado para terminar suas tarefas daquela tarde gelada.
Benedito escuta Virginia, não acreditando no que ouve. Está convencido que Virginia blefa. Inventa, enfim... “ha mais de um ano, Dolores, todas as quintas-feiras, das 14 às 17 horas freqüenta um hotelzinho barato na rua da Ladeira“. Durante todo esse tempo, Virginia nunca foi a nenhum psiquiatra. Faça chuva faça sol, nem Dolores nem Virginia não faltavam os compromissos imperiosos: Virginia na praça sentada no banco, quente ou gelado, com sua bengala escondida. E Dolores, no motelzinho barato, transa faceira, feliz... Tudo continuaria, se naquele dia, a velha Virginia não tivesse quase congelado suas frágeis pernas no frio glacial naquela tarde. “Benedito te esconde, lá vem eles” fala baixinho a velha Virginia, que já se sentia aquecida, pelo casaco surrado que o cobria.
Escondido, o suor escorria. Benedito tremia. Mas tinha certeza de que seus olhos não o traíam: lá vinha Dolores feliz, adelgaçada pelo prazer despendido. Recolheu a bengala, devolvendo a Virginia. Para completar a desgraça do Benedito, ao lado da Dolores, estava Floriano, o cara forte e parceiraço de tempos antigos. Depois de rápidos cumprimentos, Virginia se levanta. Dolores identifica o casaco surrado, e congela. Ao virar-se, Dolores vê Benedito pondo um fim ao banco da espera. Calmamente Benedito diz entre soluços, “não acredito, não acredito”. O mau estar se desfaz com certa rapidez, e assim, voltaram os quatro pra casa, absurdamente conversando as amenidades cotidianas de um galpão de reciclagem.
Sorrateiramente passaram-se os dias. Num crepuscular fim de tarde, o Catarina – mulato malandro, que degolou a mulher e fugiu para o sul - chegou silenciosamente em minha janela, fazendo sinal que viesse olhar para o outro lado do muro. Desconfiado, enfiei meus olhos no pequeno buraco. Não acreditei. Olhei novamente tentando arrancar os demais tijolos que estreitavam minha visão. O inesperado eu vi: Benedito e Floriano, docemente beijavam-se, abraçados um ao outro sob o testemunho da lua cheia.

Pedro Figueiredo
maio de 2009

2 de abr. de 2009




As mesmices globais



Duas catedrais, uma em frente à outra. As duas lotadas. Música ambiente, harmonizavam seus espaços. Em uma delas, pessoas silenciosas, que na penumbra meditam, dormitam, cochicham. O que cochicham? Diante de uma pequenina imagem barroca, do altar lateral da velha catedral cinzenta, a mulher chorava de pé, copiosamente. Entre soluços, rezava alto. Pedia pelo marido que se foi. Será que morreu ou dela desistiu? A velha catedral já era cinza nos tempos juvenis de minha mãe, quando um lambe-lambe a fotografou fogosa.
Na outra catedral à frente, seus fieis consomem. Na calçada em frente da outra catedral, mulheres gorduchas oferecem alho aos transeuntes. “Alho porro”, gritam! Madames reluzente, - parecendo de cera ou plástico – compram. Compram por pena da negra gorducha.
No outro lado da rua, eram oferecidas velas coloridas. Atravesso a avenida entre pedintes mal cheirosos da escadaria, no canteiro central jogados, em baixo de árvores frondosas.
Fortes seguranças espantam o pipoqueiro teimoso, que “a los pasitos” fica sempre mais perto da porta da outra catedral. Belíssimo prédio neoclássico. Todo reformado. Ou melhor, a fachada. A casca. Aquilo que os bancos fazem com os antigos prédio de históricas capitais. Salvam as cascas. Dentro, tudo é linha reta. A mesmice pobre da reta. TOM é a razão social do churrasquinho que inferniza os passantes com seu cheiro graxoso e fumacento. O empreendedor preferiu a sombra rala da sina-sina de minúsculas flores amarelas em frente das duas portentosas catedrais.
As duas tem a mesma missão cruel: criar atmosferas próprias em vista de acalmar a ansiedade humana. Ansiedade: a dor silenciosa que vem de dentro da alma, de suas entranhas. Dor, que não para no seu latejar. Desejo inexplicável, incontido de ir não se sabe pra onde. Desejo de comer não se sabe o que. Gastura que ninguém explica. Vulcão adormecido pelos produtos oferecido no interior das velhas e das modernas catedrais. Angustia que se re-volta enfurecida, desconsolada em solidão, em busca de novos desejos incontidos.
O templo do consumo seduz. Seduz multidões. Os que estão dentro e os que estão fora dele. Os que passam na porta são atraídos pelo seu cheiro, pela sua luz. Lá dentro tudo é luz. Luz intensa de fragrância suave. Os sentidos já foram todos ludibriados pelas mídias poderosas, que silenciosamente estudaram as raízes da solidão humanas. Indivíduos, grupos, são levados para dentro dele por suas próprias pernas, ou encanto de sereia.
Outras multidões ficam fora, olham e sonham desejosos de também um dia as mercadorias estejam ao alcance de suas mão, para também manipulá-las e descartá-las. O fetiche se constitui pela sua inatingibilidade. Quanto mais distantes se apresenta, mais desejado são. Os ditadores de ontem e de hoje, servem-se ainda destas estratégias, para se perpetuarem na arte de serem adorados. Uma vez bolinadas, conhecida sua materialidade, o encanto fenece. De forma inteligente os sistemas criam outros, e outros tantos para continuar a ópera.
A Idade Média mostrou-se pródiga na produção de artefatos precisos em vista da manutenção do controle. Fragmentos de ossos apareciam em determinados lugares, e para lá multidões se encaminhavam. Enquanto isso não se questionava a ação escravista do senhor feudal, e dos poderes incontroláveis dos papas.
Novas e velhas mercadorias se revezam, com o mesmo objetivo. A estratégia de controlar a ansiedade humana é antiga. A musica ambiente suavemente toca, enleva a alma, aliciando aos outros fieis a se auto-controlarem através da mortificação da carne, suplantando - adiando - o desejo. O judaísmo suplantou o diferente. Às tribos ditas pagãs é imposto a pobreza monoteísta, unificando tudo, acabando com o diferente, com as diferenças e sacrificando a diversidade. Concentrado poder num só Deus, masculino e branco.
Na outra catedral, os mesmos apelos. Os sentidos se aguçam. A propaganda se encarrega de armazenar na retinas suas imagens. Uma luz intensa assanha o olho. O tato interpelado compulsivamente apanha o objeto do desejo. Das prateleiras ele descem. O carrinho recolhe. O ritual continua: gorduras, amidos, xampus, diet. Pilhas de papel higiênico despencam, os repositores engalfinham-se na organização impecável. Tudo na mais perfeita ordem, para a liturgia continuar.
Entre pilhas de um referido papel, e de latas de alimentos pra gatos, o jovem casal discute: “Tarado! Você estava olhando pra ela, me respeita”, e a contenda continua. Que desejo imenso de escutar detalhes da recaída ciumenta! Mas o medo da indiscrição é maior que o desejo de escuta do drama conjugal. Do incontido medo de ser trocado, de ficar só, com seus botões, no encontro radical consigo mesmo.
Na outra catedral o sino toca. O agudo suave toma conta de tudo. Revoadas de pombos transferem-se de torres. Idosas senhoras lentamente sobem as velhas escadas cinzentas, diante das mãos estendidos de pedintes. Os poucos trocados ali jogados, alimentaram assassinos vendedores da pedra venenosa. Algumas olham, nem todas. Algumas trocam de lado na escadaria. Mas outras mãos lhes suplicam. Assim continua a romaria, na bendita escadaria. Dos que pedem e das que sobem.
Depois de visitar a velha e a nova catedral, cansado, pensativo sento no banco onde pretendo contemplar o fim de tarde fora da minha capital. O entardecer é ruidoso na Avenida Rio Branco. Incrível meu Deus! Mas reparo quase sonolento que quase tudo é a mesma coisa. Lá e aqui. As lojas, os outdoors, as sacolas, as bermudas que os jovens usam todas são iguais. Não seria muito difícil contar os modelos usados entre os homens, inclusive as cores são as mesmas. Todos mostram a marca das cuecas que usam. Tinha a sensação que logo-logo estaria vendo alguém só de cuecas caminhando na calçada. Na sua grande maioria usam fones de ouvidos. Muitos, muitos mesmos parecem que conversam sozinhos, ou caminham rindo pelas ruas. As tatuagens? Bom, as tatuagens, parecem que todas são exatamente iguais em suas cores são muito semelhantes, inclusive os lugares onde as aplicam, no pescoço, nas panturrilhas, no umbigo, nos seios. As tatuagens tomaram conta, marcaram o corpo inteiro. Como tropa de gado, caminhamos silenciosos, teleguiados por forças invisíveis poderosas que fazem moda, produzem cheiros, novos vícios.
Meditava comigo enquanto apreciava do lusco-fusco da cidade que não deixava de ser linda.
Enquanto isso, lia prazerosamente a Viagem ao Redor do Meu Quarto de Xavier de Maistre, escritor francês - 1763-1852, que entre tantas coisas lindas e duradouras que escreveu se perguntava se “O desejo eterno do homem não seria o de aumentar seu poder e suas faculdades, de querer estar onde não está, de recordar o passado e viver no futuro. Desejaria comandar exércitos, presidir academias, ser adorado pelas mulheres belas e formosas, e mesmo assim possuindo tudo isto ainda terá saudade dos campos e da tranqüilidade, invejará a choupana dos pastores. Seus projetos, suas esperanças naufragaram sempre de encontro às desgraças reais inerente à natureza humana. Nunca lhe será possível encontrar a felicidade’.








PEDRO FIGUEIREDO
Na cidade de Santa Maria
Nos 15 dias, que nos introduziram-nos no ano de 2009
As cidades catalizadoras


Catalizadoras é a característica das grandes cidades "matrizes" nas Regiões Metropolitanas. Como forças centrípetas gigantescas sugam dos municípios da periferia suas alternativas econômicas, de lazer e cultura. A estrutura econômica dos municípios que umbilicalmente se relacionam com elas sofre uma espécie de "atrofiamento" permanente e ascendente. É em direção a elas que se locomovem as pessoas para comerem sorvetes, comprarem alimentos, roupas, irem aos cinemas... Os que não conseguem ir por absoluta falta de condição financeira - a grande maioria - ficam na degustação das empoeiradas ou lamacentas ruas e becos de cidades cada vez mais desordenadas: para os homens nos fins de semana restam os bares de cachaça barata, para as mulheres, as igrejas pentecostais que se proliferam vertiginosamente. Uma parcela significativa, sem alternativas, degusta Silvio Santos, Gugu e o tradicional plim-plim da Rede Globo. Com o movimento de seus moradores em direção ao centro catalizador, vão com eles os recursos que não voltam, enfraquecendo a economia local, como uma espécie de mão única, sem retorno em benefícios para os contingentes da "periferia". Para as cidades periféricas sobra a tarefa de limpar o resíduo do consumo feito no centro catalizador. À elas cabe resolver os problemas dos rejeitados(as) pelo mercado de trabalho, adolescentes e jovens sem ocupação. São as cidades da periferia, que enfrentam o problema cada vez mais assustador de postos de saúde sempre superlotados de crianças e idosos, as grandes vítimas do sistema de exclusão. Como sangue-sugas gigantescos, os recursos adqridos com a venda da força de trabalho no centro catalizador são entregues na compra de alimentos aos grandes conglomerados do consumo, que se multiplicam em pontos estratégicos, asfixiando os pequenos e médios empreendimentos do comércio local.
Este debate é muito pouco colocado na agenda dos gestores locais que permanecem de forma isolada, tentando saídas isoladas. A gestão pública não acompanhou a dinâmica das mudanças estruturais dos últimos 50 anos. A compreensão tradicional da gestão das cidades esclerosou-se. Ainda não se consegue fazer uma leitura das profundas mudanças ocorridas. Inverteu-se completamente a situação campo-cidade. As cidades dormitórios da década de 80, vinte anos depois, tornaram-se cidades vivas, congestionadas de adolescentes e jovens que foram excluídos pelo mercado de trabalho, idosos e crianças que perambulam, suportando a ausência de programas e equipamentos que as incluam nas benesses que a cidade catalizadora oferece. Encurraladas por uma estrutura anacrônica de guetos - secretarias - onde cada uma olha para seu "feudo", a administração pública agoniza, oferecendo resistência em integrar ações e programas, buscando alternativas isoladas, desarticuladas, despotencializando recursos financeiros e humanos.
Os problemas vividos por uma só cidade da periferia do centro dinamizador são exatamente os mesmos vividos pelo conjunto delas. Faltam iniciativas que possam equalizar tempo, recursos, potencial humano e tecnologias disponíveis. A problemática do meio ambiente é um exemplo significativo deste flagelo. Em função dos problemas causados por apenas um município, todos os outros são vítimas diretas dos mesmos. O esgoto que faz de córregos e rios verdadeiras corredeiras apodrecidas, vai apodrecendo outros tantos que permanecem logo depois, contaminando a água, comprometendo lençóis subterrâneos, encarecendo-a no seu tratamento e gerando um número incontável de doenças desconhecidas, que logo depois vão desaguar na ampliação das filas dos postos de saúde do município periférico sem o recurso necessário e no olhar tristonho e frenético de seus habitantes. A ampliação do fenômeno urbano é uma realidade impossível conter. Somos seres coletivos por natureza. Precisamos criar espaços onde possamos ampliar o debate sobre os problema advindos desta nova realidade que nos provoca. Castells, no livro A Questão Urbana, afirma que "é necessário produzir, constantemente, novos conceitos, descobrir novas leis, à medida que as condições históricas mudam"(Castells, 1983, p. 13).
É nova na medida que não dominamos suficientemente os dados oferecidos por ela, as ferramentas conceituais que dispomos são insuficientes para dialogarmos com os novos fenômenos do urbano e com as necessidades de uma nova concepção do gerenciamento público. Temos a experiência da democratização do orçamento público através do Orçamento Participativo, e outras experiências semelhantes, que já é um avanço importante, porém os limites territoriais dos municípios impossibilitam ações articuladas, planejamentos estratégicos regionais... Várias temáticas poderiam tornar-se matrizes geradoras como questão relacionadas ao meio ambiente por exemplo, poderiam ser espécie de matriz articuladora que pensasse um desenvolvimento integrado, numa perspectiva solidária, rompendo territorialidades municipais falsas. Um desenvolvimento que seja sustentável no tempo e socialmente justo, com a distribuição equânime da riqueza gerada pelas grandes maiorias.
Outra matriz geradora poderia ser a cultura, através da reconstrução histórica dos nossos espaços urbanos, criando e mantendo equipamentos públicos que aglutinem gerações diferenciadas, proporcionando espaços de lazer, no cultivo do poético, do religioso como expressão da cultura, do artístico, com um programa integrado de ações, como o uso das escolas aos fins de semana, mutirões de limpeza de arroios, recriando o espaço e o tempo humano!
Assim também a questão do consumo, através de sua organização, não somente proporcionando a realização de feiras locais, mas centrais de abastecimento de caráter regional, com capacidade para atingir grandes contingentes humanos da periferia de nossas "cidades periféricas", interligados com centros produtores. Estes são alguns exemplos possíveis de articulação de ações de caráter regional. Pode-se começar um debate sobre o papel e a função das cidades catalizadoras e seus papéis no contexto regional, as responsabilidades a serem partilhadas, diante de sua capacidade de sugar potencialidades e recursos que poderiam ser distribuídos regionalmente.
O desafio é reunir forças, articular sujeitos sociais, constituindo coletivos regionais, que aglutinem movimentos organizados, Universidades, ONGs, poder público - com uma opção decidida pela radicalização da democracia e a inversão de prioridades, provocando espaços que articulem sociedade civil, iniciativa privada e poder público, onde se possam construir diagnósticos comuns de nossa territorialidade regional, construindo agendas comuns de eixos e ações integradas. Este desafio vai para além dos COREDES. É constituir um fórum regional de atores sociais permanentes, que estrategicamente possam planejar o Desenvolvimento Regional com sustentabilidade, na perspectiva da construção de um desenvolvimento, com parâmetros inclusivos, redimensionando concepções e valores até então hegemônicos.
pedro figueiredo
abril 2005
Texto originalmente publicado em

23 de mar. de 2009


Os cachorros de Dona Zezé


Com a porta entre aberta eu era esperado no 3ºandar. Entre a porta e seu batente aparece uma pálida senhora, jogando ao corredor e ao visitante uma baforada de tabaco fedorento. Diante de insurdecedores latidos atrás da porta entreaberta pelo ferrolho, parecia que chegava em um canil de luxo escondido naquele apartamento. O fedor de tabaco podre, aos poucos foi sendo substituído pela mistura desagradável de cheiros: cosméticos femininos e caninos, urinas ardidas que pareciam que entravam no cérebro sem muita dificuldade. Atônito permaneci, sem palavras para retribuir a atenção que a singela senhora me dispensava. Da fresta da porta, duas cabeças de pequenos cachorros esganiçavam desesperadamente. Entre “los perros pequeños” e o rosto da esquálida mulher, o focinho horroroso de um desconhecido rosnava ameaçadoramente. Checada a minha procedência com a porta aferrolhada, minha anfitriã some, e com ela toda turma barulhenta. O barulho continua, porém contido. Tirando o ferrolho e carinhosamente me convidando para entrar, a gentil senhora pede desculpas pelos transtornos da sala desarrumada, comenta amenidades, como a idade dos cachorros; sobre a vizinha desumana e solitária do andar de baixo, que reclama dos latidos durante o dia, pois “meus filhotes não latem depois do por do sol, adestro-os desde bem pequenos”. Entre tantos assuntos que desorganizadamente debulhavam da boca da pobre mulher, um eu não consigo deixar de pensar até agora, o qual me instigou fazer este registro: na época gastava em torno de C$ 1.300,00 reais por mês com sua “família”. Neste total estava incluído o veterinário, a moça que lhe ajudava a passear com a turma, a alimentação e vestimentas conforme a estação do ano. Gentilmente ofereceu-me café, que com o corpo gelado, aceitei. Ao levar a xícara à boca, vi pêlos minúsculos de cachorro por toda sua borda. Fechei os olhos e o paladar, bebendo de um só gole.
Não tinha visto tudo. Ou melhor, vivenciado. A gentil senhora entre torrentes de palavras – parecia ter estocado a mesma quantidade de jornais e de assuntos – abriu a porta de um dos quartos, e para minha surpresa, algo horroroso estava diante de mim: o quarto todo era tomado de uma camada de 40 cm de jornais imundos e de um fedor de urina inacreditável. Entre tantos assuntos falou-me que tinha chamado o Profetas para levar o jornal por que tinha por costume esvaziar a sala de 2 em 2 meses. Perguntei por que motivo deixava tanto tempo, respondeu-me que tinha medo de abrir seu apartamento com frequência a um papeleiro que a dois anos fazia a coleta e segundo ela tinha deixado de fazer. Sem saber porque não aparecia, convocou-nos.
Assim começa a dura empreitada, de descer do terceiro andar com blocos de jornal apodrecido de urina, superlotando o velho e guerreiro fusca. Na volta, para o segundo carregamento, o cheiro continuava forte, mas me surpreendi que o silêncio era total. Fui informado que comiam e para minha surpresa, comiam no quarto da gentil senhora. Desta vez ofereceu-me bolo de cenoura, com cobertura de chocolate que gentilmente agradeci, imaginando que naquela lâmina de chocolate estavam escondido milhões de finíssimos pêlos. Falou-me que a doação periódica de jornal - apodrecido de excremento - era uma forma de ajudar a quem estava precisando. E insistiu diversas vezes que o mundo seria bem melhor se todos fizessem a sua parte, e as autoridades da saúde fossem mais responsáveis e cuidassem melhor do planejamento familiar.
Gentilmente pediu-me que voltasse todos os meses e na saída presenteou-me com um saco de roupas usadas para distribuir aos trabalhadores do galpão. Alguns dias depois descobri que muitas das roupas “que muito pouco usei” tinham sido juntamente com os jornais, cama para seus pimpolhos.
Saí desesperado em busca de vento puro e sol, pois fui contaminado por aquele ambiente desolador. Vários dias depois, ao lembrar do acontecimento, o cheiro voltava com uma intensidade inacreditável. A pobre mulher aposentada à 15 anos encontrava em seus companheirinhos a força para continuar vivendo, sua solitária vida. Os filhos o abandonaram a muitos anos. Segundo ela todos estudaram muito, estavam fora do Brasil. Ganhavam muito bem. De tanto que estudaram esqueceram-se da mãe. Em sua torrente de palavras, me contou coisas incríveis: como o paladar diferente de cada um dos cachorros, como eles retribuíam seus momentos de tristeza ou alegria. Alguns pareciam-se muito com ela, por exemplo em reações coléricas diante da frustração, do não desejado, do desconhecido... Não canso de me perguntar nas motivações que levaram dona Zezé a fazer aquela opção na vida. Porque alguns optaram em adotar cachorros ao invés de crianças? Porque alguns sorridentemente vivem a vida e outros tristonhos palmilham a vida até emudecerem. Pensei na crueldade que move alguns e na doçura que move outros tantos. Os duzentos mil milionários que nosso país engorda, de que jeito eles vivem, quais são suas conversas, seus desejos e o que passa no coração, no silêncio solitário da alma? Mattéi, filósofo francês refletindo uma vez sobre a barbárie humana faz a reflexão do i-mundo do mundo moderno. A i-mundice do mundo fragmentado em que vivemos, criou a formula necessária para a formação de um homem anestesiado na sua dissecação. Realidade tensa no dizer de Milton Santos. O indivíduo se dilui no coletivo/massa construído fora de mim, sem a minha participação, por desconhecido poder fazedor. Faz-se o corpo bonito, aperfeiçou-se a suavidades nas simetrias, mas o nó da solidão humana não desatou. Na massificação, da moda e da cultura, além de empobrecer a estética, oferece-se uma falsa aparência de segurança dum ego solitário. Quando um se movimenta, a partir de um comando, movimentam-se todos, com o mesmo dins, a mesma tinta no cabelo, o mesmo brinco, todos teleguiados por um poder sem rosto, sem pátria, sem alma...
Dona Zezé me provocou o pensar. Lembrei-me da Caverna Platônica. Dei-me conta da ilusão da qual estamos imersos. Enquanto tudo parece avançar, continuamos atormentados pela divisão. Divisão do Ser. É melhor dialogar com os animais, do que com seus iguais. O outro é o problema. Um problema insolúvel. Melhor não mexer. Aqui fico eu com meus gatos, meus cachorros...
Nunca mais soube de dona Zezé, mas sempre que dela me lembro, me pergunto, se como num romance de Kafka, ela não acabou fundindo-se à eles, “seus companheirinhos”, comendo suas comidas, dormitando e com eles sonhando, fazendo consultas ao veterinário... Será que ela já não era um deles e eu equivocadamente não pude ver?



Pedro Figueiredo
Agosto de 2007

17 de mar. de 2009




Os ossos do Juvenal



Isto aconteceu já faz tempo. Nos tempos de nossa juventude. Tempos em que tínhamos a certeza que faltava muito pouco para fazermos a revolução; onde as pessoas e o mundo seriam transformados em um ninho de justiça e de alegria. Numa sexta-feira a noite, dois meninos esbaforidos invadiram nossa casa. De tão cansados eles não conseguiam falar. Depois de tomar água, e muita insistência nossa para que se acalmassem, começaram: “vai lá em nossa casa, o diabo entrou no corpo do nosso pai. Vamos lá, vamos lá...”.
Por becos escuros saímos também esbaforidos. Empurrados por um misto de ansiedade e curiosidade, corríamos na direção da dita casa onde o demônio resolveu fazer sua morada. Muita gente na frente. Como os barracos estavam um quase em cima dos outros, todo mundo aglomerou-se em frente da moradia sinistra. Deixaram suas casas, seus afazeres de um rotineira noite de sexta-feira: as carnes graxozas já cheiravam queimadas, mistura de sons sertanejos variados, mulheres no meio de suas maquiagens, alvoroçavam-se em disparatados comentários, sem falar na cachorrada que desinquietas, circulavam entre as pernas dos curiosos assistentes.
Urros satânicos eram ouvidos já de longe. Os comentários ao longo do beco que percorríamos com certa dificuldade, eram variados: Um velho de barba mal feita contava acontecimentos semelhantes, de gente que uma vez “possuídos” das orelhas vertiam sangue, e que em contato com a terra transformavam-se em líquidos mal cheirosos, afirmava de forma categórica ser o cheiro do diabo: o puro cheiro do enxofre. As crianças, bem, as crianças faziam a festa! Confesso que não vi em nenhum daqueles olhinhos sinais de apavoramento.
Quando entramos na sala, sem exagero, estava totalmente lotada. Os urros vinham do quarto, separada da sala por lençol. A cozinha era uma pequena varanda e parecia que a porta era feita de muitas cabeças, todas de mulheres alvorotadas.
Enfim, entramos no quarto. A cena era inacreditável. As pessoas soavam, pelo excesso de calor, os cabelos colavam ao rosto de mulheres que circundavam ao redor da cama. Um homem, relativamente gordo, de pele morena, encontrava-se de calção, atado pelas mãos e pés. Com pernas e braços abertos amarrados, tomava conta da cama toda. A frágil cama de madeira era golpeada, com o que restava do corpo solto. Uma espécie de transe começou a tomar conta de mim. Tinha uma sensação de que estava sonhando, ou flutuando. Não podia ser verdade. Aos pés da cama, um mulher jogava sal no pobre corpo, e sua boca estava cheia de “colas de lagarto” para uns, ou “espadas de São Jorge” para outros. Da boca diabólica vertia uma espécie de espuma, esverdeada pela plantas invasoras.
Recompondo o primeiro impacto, pedi silêncio. O silêncio prontamente aconteceu. Peguei das mãos da mulher o frasco que dele era jogado o sal. Num daqueles lances de espírito que nunca se saberá de onde sai, comecei a jogar sal pela cabeça da população que habitava aquele pobre quarto. Lembro que algumas mulheres se benziam com o sinal da cruz. Pedi para uma mulher que passava álcool em seus braços que tirasse as plantas daquela pobre e dilacerada boca. Assim foi feito. O silêncio se fez total por parte das participantes/assistentes. Somente o corpo amarrado e o ringir da velha cama ainda não se aquietavam. Pedi para que todos dessem as mãos e rezássemos um Pai Nosso. Confesso que foi o mais fervoroso Pai-Nosso que já ouvi rezado. Pedi calmamente que o desatassem. Alguém retrucou com medo que se suicidaria. Me deu medo. Confiante, novamente pedi. Não aconteceria nada, tinha muita gente em volta da cama, da casa, no beco. Desamarrado lentamente foi. De repente o homem deu um pulo na cama, e sai caminhando cabisbaixo como quem procura alguma coisa em direção a porta da rua. Uma vez no pátio, pelo portãozinho de madeira tomava o beco, e como num corredor polonês, olhares tristonhos e curiosos o espreitavam. Ele não falava, caminhava entre luzes e sombras, parecia que olhava os rostos e o chão, sem vê-los.
Terminado o cordão de assistência, começou a correr. Correu desesperadamente gesticulando os braços freneticamente. E lá fomos nós, muitos de nós, novamente correndo atrás do atormentado homem. Ele corria, como que não sabe para onde vai e nós também. Corríamos. Tomou a direção do cemitério dos pobres da Santa Casa, do qual se falavam estórias de coisas nunca vistas. Com certeza nunca vistas mesmo.
Ao chegar em frente do portão gigante, tentou subir, e não conseguiu. Tirou do pescoço um cordão e joga para dentro do cemitério. Escalou, finalmente, o muro ao lado de mais de dois metros de altura. Enquanto gritava coisa que não se entendia, escalamos também, restando apenas três dos nossos no chão. Uma vez no topo, olhando aquela imensidão de cruzes silenciosas, como que desencantados, empreendemos a difícil descida. O homem senta no chão e começa um choro convulsivo. Aos poucos se refaz. O necessário silencio se fez. Calmamente começou falar. A falar como alguém que não tem ninguém a sua frente.
Juvenal, seu velho pai veio para cidade grande junto com o último filho dos quatro que já estavam na capital. Antes de morrer pediu que não o deixasse sepultado longe da sua família, de seu povo na pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul. Quando da data de seu falecimento, os filhos todos muito pobres, não tiveram condições de sepultarem o pai como lhes havia pedido. Quando completou-se o tempo para transladar os restos mortais do velho Juvenal, voltaram ao cemitério para uma segunda tentativa. Chegaram a conclusão que não teriam condições novamente. Alem da dor de todos estes movimentos impotentes, era muito caro os gastos com o cemitério, e emperrava numa burocracia inacreditável. Assim começava a segunda parte da história. Em conversa com amigos, os filhos foram informados que subornando o coveiro, era possível resgatar o que restava do corpo do pobre Juvenal. Assim foi feito. Rateio suado, pagaram o coveiro corrupto, e a mala foi deixada no lugar e na noite combinada. Entretanto, na madrugada quente daquele verão malandro, como acertado foi, a mala, com os ossos do velho Juvenal lá não se encontravam. Misteriosamente desapareceram, ou nunca lá foram colocados.
Naquela sexta feira, depois da tradicional cachacinha de final de tarde, ao homem moreno, de calção e levemente gordo, apareceu o velho Juvenal, dizendo a ele que jamais descansaria longe de sua gente e de seu pobre povo. Ao pobre e coitado filho imputou-se , a culpa da tragédia cultural de uma geração miserável, desgarrada da terra, vivida no lamacento chão das periferias de nossa capital, e enterrados em valas comuns, longe de seus entes queridos.


Pedro Figueiredo
Setembro 2008