29 de mai. de 2011


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Três pequenos relatos

de dores femininas



Ao cheiro de terra molhada do pátio varrido a pouco, misturava-se o perfume das madressilvas silvestres. Os perfumes natalinos eram cheiros já há muito conhecidos: fornadas de bolachas doces que sucediam-se a outras de perus e porcos que com o calor do forno antigo, derretia-se a banha. Enquanto a gurizada se divertia de esconde-esconde, cobra cega no pátio gigante, homens e mulheres da vizinhança, compadres e comadres beliscavam choriços, misturadas à cachaça pobre, trazida do povoado decadente.

Já se tinha dado pela falta de Macau – que não era o porco – o anfitrião da festa. Mas..., enquanto o tempo passava e algumas cabeças começavam a rodopiar sob o efeito do ópio nobre, Jurema angustiada se perguntava onde se meteu Macau, o amor de sua vida.

Gritos de “Macau” começaram a se espalhar em volta do pátio na direção da mata fechada: silencio! Homens se agrupam e se aventuram aos gritos para o seu interior: Macau..! Macau...! o silencio responde com um eco envergonhado...

De repente um grito surdo de pavor irrompe do meio da destrambelhada gurizada... Um deles vê Macau roxo, iluminado pela luz da luz cheia, dependurado no maior de todos açoita-cavalos, cuja sombra em dias quentes, afiava-se facas e facões, carneava-se porcos, depenava-se galinhas, limpavam-se os jundiás dos poços silenciosos do girimunzinho, riozinho que cortava aquelas terras pobres de gente pobre que tocavam a vida, plantando mandioca, amendoins, arroz do seco e tantas coisas mais. Viver prá eles, era criar os filhos que Deus lhes dava para amar, plantar a roça e trocar por farinhas, açucares e alguns tipos de panos prá cobrir o corpo.


****


Os natais se sucederam martelados por aquele pesadelo inesquecível. Os meninos cresceram. As luzes da metrópole inebriaram também seus olhos. Jurema não capinava mais a roça de mandiocas e amendoins e já tinha chorado todas as lágrimas pelo Macau amado, que ficara esquecido na tumba antiga, cercada de maricás silvestres.

Hoje trocara enxadas e ancinhos por vassouras, panos ensopados de detergentes. Cheiros estranhos o embalavam na limpeza do condomínio da baixa classe média que além de pagarem-lhe um salário parco, lhe ajudavam a criar os cinco meninos que se acotovelavam no barraco na Assis de Farias, periferia da Guaíba fedorenta, cidade gaucha que o capitalismo global resolveu fazer dela o arroto de uma civilização decadente.

Mas os meninos cresciam... As meninas já chamavam Jurema de “minha sogra”. Mas os natais eram todos iguaizinhos: sob a luz da lua cheia não tinha um que não lembrava de Macau lambuzado da cor roxa o corpo inteiro. Jorginho o mais velho, aparentemente tinha esquecido do semblante de Macau, mas quando sentado no ônibus ou na madrugada insone, não cansava de se perguntar por que a boca de seu jovem pai, não tinha recolhido sua língua enorme, esbranquiçada... Para Jorginho, o passar dos anos desfigurou-se a imagem de seu pai, Macau não era mais Macau, o pai gracioso, amoroso e forte, mas transformou-se numa língua enorme a atormentar seus dias.

Jurema preparava as roupinhas na espera para o primeiro neto. Mas naquele Natal, em um salso chorão no beco dos fundos da Assis de Farias nº 35, a pobre mãe retirava da corda Jorginho, perseguido pela língua, silenciosa e roxa do pai que sem nenhuma explicação partiu naquele antigo Natal de medos e pavores que perseguia os dias.


*****


Numa madrugada, dos outonos destas vidas cansadas, o celular toca freneticamente: “mataram o filho da Marlene”...quem? depois de um pequeno silêncio, volta a vós entre soluços, “mataram o filho mais velho da Marlene”.

Virei de lado tentando conciliar o sono. Nada. Vira, desvira. Nada.

Dei umas voltas no jardim com a cabeça ensopada de destempero – a natureza começou querer dialogar comigo – tentando entender o que houvera, pois Marlene tinha muitos filhos, por que lhes teriam raptado mais um?

Porque a vida tem de ser tão amarga com os pobres? (apesar de alguns afirmarem que o sofrimento e a amargura do viver humano destila-se nos corações de todas os viventes, com a diferença dos subterfúgios criados por ambas para o disfarce da dor).

No galpão um amontoado de recicladoras. No centro Marlene silenciosa, rosto inchado, – também ela já tinha chorado todas as lágrimas – não chorava nadinha quando lhe abraçavam. Alguém da rodinha, solidária com a mulher dolorida, cuidadosamente murmura: “vá prá casa Marlene, descansa...” ela responde: “o que vou fazer em casa? Lá ficarei sozinha, aqui vocês estão comigo na espera do meu menininho morto”.

Passou-se as horas. Suspendeu-se o turno de trabalho daquela manhã. O lixo deixou por algumas horas de ser o centro de suas atenções, e em torno de Marlene continuou o rosário de histórias de sofrimentos. Uma delas que ajudou consolar Marlene, foi a história da dolorida Jurema, que de tantos natais passados não chorava mais seus mortos.

Sinais inequívocos de sofrimentos, que como um véu encobria seus rostos turvos e silenciosos.

No outono

de 2011

Em terreiro de pobre, compadre,

desgraça dá de abastança,

não se vê outra planta.

Jorge Amado – Tereza Batista Cansada de Guerra –

28 de mai. de 2010


Repense o mundo,
visite um reciclador

Uma chuva de perguntas atordoa as mentes de trabalhadores de um galpão de reciclagem, quando um cidadão qualquer resolve visitar um desses empreendimentos. Mais atônito fica esse cidadão quando começa a entender o que é feito do lixo que ele produz na intimidade de sua residência. Suas perguntas começam a ser respondida ao fitar a gigantesca gaiola. Como um cobrador de ônibus, que no fim do dia, exausto, não agüenta mais ver rostos de todos tipos que pela sua roleta passam - abatidos, eufóricos, tristonhos... - o reciclador cansado de seus duros dias, ao ser perguntado, responde o óbvio do seu rotineiro trabalho. Montanhas de lixo são devoradas por mãos frenéticas, organizando, transportando, transformando o caos do lixo, o caos de todos os odores, de todas as cores.
Quando o lixo sai do caminhão e cai na gaiola do galpão, já se sabe de que bairro veio a carga. Ela é reconhecida pelo tipo de descarte que aparece. Como é muito comum nas calçadas encontrar geladeiras, fogões, microondas em plana condições de funcionamento, assim também das gaiolas do galpão descem os descartes mais inusitados. O ato de rasgar uma sacola transforma-se num momento mágico e surpreendente: restos de pizza e frascos de xampus pela metade já não impressionam tanto. Mas quando descem gaiola a baixo, o licor alemão, restos de tabletes de chocolate suíços e celulares com chipes que ainda permitem falar até 30 dias, tudo se torna inusitado. As respostas ao cidadão comum destilam-se rapidamente da gaiola para a mesa, da mesa para os fardos, pelas das mãos das recicladoras. Oitenta por cento dessa categoria são mulheres chefe de família.
Um galpão de reciclagem é um dos locais onde as pessoas teriam que passar ao menos um dia durante a suas vidas. Lá encontrariam as respostas para boa parte dos dramas cotidianos que vive a humanidade. Se descarta tudo, desde a garrafa pet, saquinho do ruffles, até o discreto pênis de gel e milhares de outras coisas que com certeza, ninguém imaginaria.
Os produtores de montanhas intermináveis de lixo, não tem noção para onde vai o lixo, desde as luxuosas até as miseráveis cozinhas e banheiros de qualquer cidadão de uma cidade. Tanto faz os que descartam os licores alemães ou as quinquilharias “made in china”, com certeza, não titubeariam também em descartar rostos e amores. Esta é a cantilena, cantada e recantada. Descarta-se gentes e coisas, para amanhã consumir outras gentes e outras coisas. Um galpão de reciclagem é um retrato do mundo.
Estamos condenados a superficialidade do consumir pelo consumir. Esta lógica doida, determina agora a relação dos humanos com suas vidas, com seu corpo e com seus afetos. Da mesma forma que o cobrador de ônibus exausto da multidão que passa por ele, o reciclador também exausto saberá que no outro dia aparecerão mais e mais produtos indicado pelas mídias, e novas necessidades incitarão os humanos a descartarem o que foi adquirido ontem.
Assim passa a vida pela roleta, pela gaiola, pelas esteiras da indústria da construção de monstros. No galpão passam os sonhos frustrados de uma humanidade que não agüenta mais a lógica do consumo sem sentido. Não agüenta mais, mas sem saber por que segue consumindo. Caminhamos como bois num brete em direção ao silencio total. Encontramo-nos no fim de um tempo. onde as razões que estruturam esta forma de olhar a vida, as coisa, e o mundo vai nos devorar. Mas, com certeza, por um longo tempo ainda os recicladores continuarão devorando esse lixo devorador de vidas.
15.05.10
Pedro Figueiredo

11 de out. de 2009


Os filhos do Brasil



Pelo bem e pelo mal, no mundo todo é reconhecida a fama dos meninos e meninas do Brasil. Quando tem em seus pés uma bola de futebol, de Ronaldinho a Marta estão entre os melhores do mundo. Certa vez um cronista esportivo comentando o desempenho de um determinado jogador brasileiro, falava que parecia que seu cérebro situava-se em seus pés e pernas, pelas “habilidades mágicas” com que se relacionava com seu instrumento de - lazer - trabalho. Assim, os meninos do Brasil são exportados por experts em detectar talentos, cujos cérebros são hospedados por canelas e coxas formidáveis. Já houve casos de levarem a família toda para a Alemanha, para aperfeiçoamento do talento precoce. O tempo passa rápido e na maioria das vezes os meninos voltam à pátria amada ainda tenros em idade, com tornozelos e joelhos irreversivelmente quebrados, tendões arrebentados e com as mais diversas formas de avarias, ligadas a lógica da maximização do potencial adolescente. Outros tantos voltam gordos e famosos, falando os mais diversos tipos de asneiras, próprio de quem tem realmente o coração e a inteligência nas pernas e pés. Nelas, além do cérebro foram usadas suas almas por um sistema utilitarista e desumano.
Os meninos e meninas do Brasil foram matérias de capa nos jornais do mundo todo quando o pequeno Tiago foi morto, depois de ser arrastado por vários quarteirões por um carro de bandidos nas ruas do Rio de Janeiro. Eles foram lembrados também quando Isabela, a menina de classe média paulistana foi jogada – num limite indecifrável entre covardia e loucura - pela janela do prédio pela madrasta, com a cumplicidade do pai. Alguns menos otimistas arriscam afirmar o contrário. O mundo também não esqueceu da conhecida Chacina da Candelária na década de 90 no Rio de Janeiro.
Para pousar semi-nuas as meninas do Brasil, com anúncio nas mãos, disputam lugar em filas intermináveis no tira teima “de quem será a mais gostosa” para ter sua foto publicada na página central do mais chulo de todos os tablóides conhecidos da província. Seus records de venda só se assemelha “a números escandinavos de leitores”, gaba-se o empresário tirano. Um dos poderosos proprietários das senzalas modernas do século XXI.
Os meninos e meninas do Brasil dormem em esteiras de papelão, enrolados em sacos plásticos nas esquinas das cidades velhas de nossas capitais, entorpecidos pelo crack, a droga dos pobres, que hoje invade aos condomínios da classe A. Graças a Deus que bateu nestas outras portas, por que assim a elite se mobiliza, denunciando as mazelas que contamina multidões de miseráveis, e uma pequena parcela de bem nascidos. Enquanto a dengue, o mal de chagas e outras tantas doenças tropicais não baterem nestas “outras portas” continuarão morrendo pobres a rodo nas periferias e rincões esquecidos do Brasil
As meninas do Brasil, que vendem o corpo por trocados para sustentarem suas famílias, fazem parte da mesma lista de chagas consagradas da Pátria Amada. De norte a sul, a crueldade ronda seus dias – e noites. Os sofrimentos e dramas são exatamente os mesmos. Os gringos que as negociam no mercado - mercado - charmoso de Copacabana são caudatários culturais da mesma elite imunda, que perpetuou a extorsão secular na terra verde-amarela. No Rio são alemães, suecos, americanos. No norte, são franceses que através das fronteiras da Guiana, fazem voar as meninas do Brasil, em vôos sem retorno, para boates e bordeis de luxo espalhados pela Europa toda. São da mesma origem as meninas de lá e de cá. As meninas do centro velho de Porto Alegre são as mesmas dos bordeis de São Luiz do Maranhão, sede da dinastia Sarney. (Fala-se que os ruídos saídos de não sabe donde, nos dias do chá dos acadêmicos, seria Machado de Assis gritando que chutasse pra fora esse capitão do mato safado, coronel patético e asqueroso).
Os meninos e meninas do Brasil que vendem guloseimas nas filas dos ônibus urbanos, em praças e ruas de nossas capitais, são os mesmos que se assam nas carvoarias do centro-oeste brasileiro, preparando seus esturricados dias como mão de obra barata – escrava - do latifúndio mesquinho e insolente. De perfil idêntico são os meninos e meninas que aos doze anos se envenenam, ajudando seus pais a aumentar a renda familiar, classificando a folha envenenada de tabaco nas regiões fumageiras do estado gaúcho, com o falacioso argumento de que é preciso trabalhar cedo para ser gente grande responsável. Pena que esquecem, que os outros meninos e meninas, filhos de “outras portas”, exatamente nesta mesma idade, encontram-se em laboratório de línguas, treinam ginástica olímpica em ambiente climatizado, ou brincam com seus vídeos-games de última geração em bibliotecas recheadas do quem tem de melhor da literatura universal. Não precisa dizer de onde sairão os príncipes do judiciário que decidirão o destino do latifúndio criminoso, do crime do colarinho branco, da evasão de divisas...
As meninas e meninos do Brasil, são as multidões de lindos e macios rostos, vitimados por um estado omisso e corrupto que, nega os equipamentos básicos para uma aprendizagem decente, aviltando educadores com salários vexatórios, sobrecarga desumana de trabalho e condições horripilantes para o bom desempenho da arte de construir corações e cérebros, que pensem o Brasil de um outro jeito. Os meninos e meninas do Brasil, fruto deste sistema educacional decadente, são os mesmos que se agrupam nas esquinas das periferias, consumindo as tolices da rima pobre do hip-hop ao funk, cultura importada, consumida majoritariamente por quem não teve a oportunidade de conhecer aquilo de bom, que ao longo da história produzimos.
Os meninos e meninas do Brasil são aqueles filhos de todas as cores, que nas sinaleiras nos “achacam”. Portadores de uma impotência desmedida, que num misto de vergonha e medo não sabemos como comportar-nos diante do sofrimento de compatriotas inocentes. Verdadeiros estrangeiros na terra que os fez despertar para uma vida de tormentos incontáveis e frustrações irrecuperáveis.
Os meninos e meninas do Brasil são aqueles que boquiabertos somos alertados pelas mídias sensacionalistas quando se rebelam – qual vulcão adormecido vomitando torrentes de fogo - nos porões da vergonha nacional das antigas FEBENs, maquiadas por sucessivos pseudônimos. Amontoados, lá se encontram as multidões de adolescentes pardos, ou “cinza” que na nomenclatura reflexiva de Tiburi, - filósofa gaúcha -, tenta re-enquadrar nossa antropologia etnográfica.
Os meninos e meninas do Brasil são os milhares que se amontoam em escolas containers, tentando aprender lições que nada falam de suas vidas. Os meninos e meninas do Brasil, são as centenas de sem-terrinhas das Escolas Itinerantes do MST, que lhes foi negada no RS a oportunidade de pensar a sua educação a partir de sua realidade de deserdados da terra.
Os meninos e meninas do Brasil são os filhos de Elton Brum que contemplam o pai lutador, covardemente assassinado pelas costas, a mando de um governo que se notabiliza por feitos truculentos e corruptíveis até então nunca vistos na província.
Tomara que “que nossas façanhas – não – sirvam de modelo ao toda a terra”, como reza a conhecida impáfia positivista gaúcha.

Pedro Figueiredo. Setembro 2009


* * * *



O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, “democracia racial”, raramente percebem os profundos abismos que separam os estratos sociais. O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade. O povo-massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido. Inclusive o dom de serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos e, invariavelmente, imprevisíveis

Ribeiro, Darcy . O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil / São Paulo : Companhia das Letras, 1995

8 de ago. de 2009



O gari e a bela de saltos


Um buzinaço estridente chamou a atenção dos que passavam no calçadão da classe média empobrecida do degradado centro da capital. Tentando equilibrar-se nos altos saltos, a bela saltou do carro que dirigia, gritando descontroladamente. Aglomeravam-se os que passavam na lateral da praça. Os trabalhadores da farmácia, dos restaurantes da volta eram os assistentes privilegiados. A negra Maria passadeira da lavanderia, que passa todo o dia enquanto vê os que passam, na ponta dos pés tentava também entender o que acontecia. Todo mundo tentava entender as causa e o desfecho do destempero da perua barulhenta.
Em frente ao portão de sua garagem, um insensível gari resolveu estacionar o seu carro. Tratava-se daqueles carrinhos, empurrados por homens e mulheres, que circulam pelas ruas de todas as cidades do mundo, no qual se recolhe o que diariamente a sociedade de consumo descarta.
Certa vez ouvi dizer que na Europa dificilmente encontra-se um europeu empunhando um. Em França por exemplo seriam os argelinos. Na Espanha os marroquinos. Na Alemanha os Turcos, enfim, os africanos do norte. Nos Estados Unidos os latinos com preferência para os mexicanos. No Brasil e nos países que eles resolveram chamar de terceiro mundo, evidentemente são os pobres, os muito pobres que desempenham a sagrada tarefa de limpar aquilo que os outros sujam. Sagrada, pois já pensaram na possibilidade de toda esta categoria de silenciosos operadores da limpeza urbana, resolverem cruzar os braços um dia e parar de fazer o invisível trabalho?
Ao som do buzinaço desconcertante, os que passam param, talvez pensassem que a perua bela, teria descansado por descuido seus gigantes e postiços peitos!? ao volante de sua “máquina de voar”. Ao descer com seus elegantes saltos, vendo que conseguiu aglutinar curiosos, fez uso de outro instrumento para chamar a atenção da pequena multidão e do surdo gari. É a partir daí que os assistentes curiosos, com certeza tiveram dúvidas do que seria mais imundo: o interior do carrinho estacionado, ou aquele orifício de colorido esquálido, - entre comentários na pequena multidão - que perfeitamente poderia confundir-se com o outro orifício do corpo humano, que adequadamente expele gazes e outras “cositas mas”.
O gari subia a ladeira lentamente com seus instrumentos de trabalho. O boné que lhe cobria a fronte não deixava ver o que lhe aguardava. Seus fones de ouvidos os poupava dos impropérios que a ele eram dirigidos e que a pequena multidão (atônita) escutava. Atônita nem tanto. Havia posicionamentos na pequena multidão. Os contra, os a favor e aqueles que de tudo tem motivo para fazer uma gracinha: “eles são todos assim”, outros relatavam acontecimentos de uma “total insensibilidade desse tipo de gente” ou “não vai estragar o salto, gostosa”... enfim, se ouvia de tudo um pouco no meio da pequena multidão.
O anonimato fornece a química da reação. É mais fácil, mais cômodo falar ou dizer coisas que numa platéia familiar jamais se diria ou faria. Bendito ou maldito aglomerado urbano, anônimo, indiferente, onde se pode fazer tudo aquilo que sempre se desejou fazer por não ter oportunidade ou coragem suficiente. Do apimentado dos amores, aos sonhos recalcados ou adiados. No meio das grandes e pequenas multidões quase tudo é permitido. Nas praças, nos cinemas ou nas tumultuosas avenidas, são lugares atávicos para deleites saborosamente proibidos. Contraditoriamente, o mesmo aglomerado anônimo, favorece os crimes hediondos de horrores até nunca experimentados pela humanidade. Desde o assalto do pivete desnutrido que alimenta a rede do crime organizado, a prostituição infantil, a pedofilia, o assalto relâmpago tão em moda hoje nas grandes capitais.
Ao olhar para as pessoas que assistem a sena, o gari se pergunta por que a bela de altos saltos xinga com tanta veemência aquele grupo?
A “surdez” do gari não o deixa compreender que ele era o centro de toda a confusão. Na lentidão dos passos, - para surpresa de todos - junta-se a pequena multidão. Também queria participar do ato. Tira um fone, escuta... Tira o outro... escuta outro pouco... de repente, à semelhança de um sapo, estala os olhos, seu rosto se inunda de verdadeira pane. Alguém acorda-o de seu torpor falando gritado:
- Ela está xingando você!
Num misto de surpresa e indignação pergunta:
- Hã, Eu!? Todo mundo ri. Enquanto isto, a bela de saltos altos caminhava em sua direção, com dedo em riste. O gari se encolhe, mas não tinha jeito, a saraivada continuava.
Certa vez, um pesquisador resolveu trabalhar sobre a invisibilidade deste tipo de trabalhadores. Ao invés de computadores, livros, livros e canetas, pá, vassoura, rodo e pano de chão foram seus instrumentos de pesquisa, reflexão e elaboração na universidade onde estudava. Anonimamente ao lado de dezenas de outros trabalhadores durante um mês inteiro trabalhou. “Ninguém vê a gente”, ele afirmava. “Eu tinha a impressão que era como um vulto que entrava nas salas e andava pelos corredores”. Durante o mês que trabalhou o seu turno como limpador de chão, de carteiras e banheiros, apenas duas pessoas de suas relações na universidade o reconheceram. Não o reconheceram por que nunca olharam em seu rosto, em seus olhos... Este tipo de trabalhador no olhar de determinados estratos sociais, são como vultos que se movimentam, num mundo onde as pessoas são treinadas para ver/perceber coisas, artefatos bem determinados. Geralmente bens em vista do consumo, que possam ser adquiridos, manipulados e descartados. Ninguém olha para este tipo de gente que muito pouco ou quase nada pode oferecer, diante daquilo que nos treinaram entender como útil.
– Nunca mais deixe essa imundice aí, - encerrando a cena - gritava a linda de saltos altos. É a 3ª vez que isto acontece. Você não sabe que aqui é a garagem do condomínio, onde moram 60 moradores? Da próxima vez vou chamar a polícia para que tire essa droga daí. Sem nada falar, o gari deixa o grupo, - que num lapso de segundos pensou fazer parte - atravessou a calçada, tirou o carrinho da entrada da garagem e deu continuidade na sua obra de limpar a cidade. Na dispersão da pequena multidão, também me dispersei, pelas ruas da cidade antiga. Mas uma pergunta até hoje martela meu pensar inquieto: até quando os garis serão xingados, o Pataxó queimado vivo nas ruas de Brasília e os meninos da Candelária chacinados...?

“...porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não teriam uma segunda oportunidade sobre a terra.”
Com estas palavras, o escritor colombiano Gabriel García Márquez termina o seu romance Cem anos de solidão.


PEDRO FIGUEIREDO


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10 de mai. de 2009



Traições tolerantes
- histórias de um tempo em que
tentávamos reciclar gentes e coisas -

III


Os ratos vinham daquele lado. Eles eram muitos. De todos os tamanhos. Iam e voltavam, tornavam a passar novamente. Faziam rápidas paradas, uma olhadinha e assustados, continuavam o caminho. Passei muitos dias depois pensando sobre o “ser rato”. Pareciam querer brincar de esconde-esconde comigo. Interessante que naquele dia não senti o asco habitual que a maioria dos humanos sentem destes aparentemente "inofensivos" animaizinhos. São exatamente um igual ao outro. Existem os grandes, outros menores, mas todos eram igualzinho ao outro. A cor, o formato dos olhos, os pelinhos da boca, enfim.
Ao mesmo tempo, o lixo sem trégua era colocado aos montões em cima da mesa de trabalho. Rapidamente, a montanha era como que engolida por oito trabalhadoras, que na mesa se escoravam, tentando descansar as pernas.
De baixo do viaduto foi que conheci a família dos Machado. Odete a matriarca. Alaor e Terezinha, eram seus dois filhos. Os três organizavam a vida daquela pobre gente, naquele viaduto, que por debaixo de sua função de ponte, tornou-se galpão de Reciclagem.
Os três viventes, eram o retrato do pardo brasileiro. Não eram negros, não eram brancos, não eram índios, eram os brasileiros. Em suas bocas, muito poucos dentes. O cunhado de Alaor, genro da Odete, esposo da Terezinha, chamavam-no de Caco. O Caco, um retaco grosseiro e agressivo se confundia com a grossura de seu tórax peludo e sujo. Sua função naquele escuro “galpão“, era garantir a mesa de trabalho sempre bem abastecida de lixo para que o trabalho não fosse interrompido.

Canhoto era o pai do desdentado Alaor e da Terezinha, marido de Odete. Foi jogador de futebol da IIª divisão numa cidadezinha do interior do Paraná na década de 70. Foi uma das primeiras gerações de craques que fizeram do futebol profissão e que graças a Odete, ao dependurar as chuteiras, tinha conseguido comprar um pequeno apartamento na rua Paraiba entre as Avenidas Farrapos e Voluntários da Pátria. A depressão pós fama levou Canhoto a beber, e o misto entre jogatina e prostituição papou o apartamentozinho. Quando Canhoto morreu, os quatro já moravam entre os abrigos públicos e as praças da cidade. O viaduto agora, era a casa da família e lugar de trabalho. Descobriram no lixo e nos co-irmãos de infortúnio uma forma de ganhar a vida.

Alguns anos antes, numa dessas esquinas do tempo, entre latinhas de alumínio, caixas papelão e pet, Alaor encontrou Caco, pelo qual se apaixonou perdidamente. Caco foi morar em sua casa, no viaduto.
Naquele dia encontrei Alaor que acabava de sair do pronto socorro meio sonolento de tantos analgésicos tomados e injetados. Encontrava-se com o braço enfaixado – tratava-se segundo ele, de uma dentada humana de grandes proporções – e com tom rude na voz, vociferou: “ele me traiu, um dia vou matá-lo”. Perguntei de quem se tratava e tive como resposta “não perde nada por esperar”. Calei-me. Alguns meses depois, encontrando Terezinha grávida pela rua e perguntando a procedência da orgulhosa barriguinha que exibia, respondeu-me: “o Caco vai ser papai”. Só então entendi a causa de braços dilacerados e juramentos de morte. Muito raramente voltei a encontrar Caco no viaduto/residência.
Num domingo de primavera encontrei Caco e Terezinha numa modesta barraquinha de camping curtindo o baby e namorando no Parque Harmonia às margens do rio Guaíba, longe dos desejos raivosos de Alaor. Soube deles, que já faziam dois meses que aos fins de semana repetiam a mesma escapadela.


O rodízio das trabalhadoras era intenso debaixo do viaduto. A exploração era assustadora. Mulheres miseráveis trabalhavam a semana toda, mas ao vender seu material, praticamente não tinham nada a receber. Iam todas embora. Ou melhor, a Odete mandava-as embora. Na outra semana vinha uma nova leva para a mesma liturgia. Qualquer possibilidade de reação: a ameaça funcionava. Lá ia embora aquele grupo, e na segunda feira pela manhã, se encontrava um grupo completamente diferente. Assim passavam-se os dias. Alaor se comunicava muito bem, mobilizava simpatizantes, atava parcerias e a solidariedade chegava. A geladeira nova doada – patrimônio coletivo - tinha cadeado na porta, e o fogão exibia um cartaz maroto: “proibido o uso”. As trabalhadoras comiam na rua, na pobre marmita fria.

Certa vez descobri Alaor dormindo numa pensão próxima ao viaduto/galpão. A prefeitura pagava. Alaor não deixara de ser um morador de rua. Junto com Alaor saía também, da mesma pensão um jovem alto, boa pinta, de olhos azuis, dizendo-se também ser morador de rua e colega de pensão. Falava com desenvoltura de qualquer assunto apresentado, não demonstrando nenhuma das conhecidas característica de um morador de rua tradicional. De quando em vez, encontrava-o no galpão dando sugestões, muitas vezes vi discutindo com a família dos Machado, eficácia na gestão do empreendimentos, preços de produto, a exploração de atravessadores e a possibilidades de ampliação do negócio, etc.. Logo começou-se a perceber através das pessoas mais próximas que o jovem e bonito rapaz tratava-se de um novo namorado de Alaor.

A reunião começou já passava das vinte horas. Fui convidado para dar uma contribuição a um grupo de empresários e entidades da sociedade civil de um bairro nobre da capital, sobre como eles poderiam contribuir na ajuda desta categoria de trabalhadores. Muita conversa como sempre nestes tipos de reunião e de público, análises de todo o tipo, depoimentos, ponderações. Enfim a reunião termina, como sempre, cheia de bons propósitos, enquanto as pessoas começam a despedirem-se uma das outras. É neste momento de uma certa sonolência no ar, que se apresenta o neto de uma bondosa senhora que a levaria de volta pra casa. Surpreendentemente tratava-se de um elegante jovem alto, de olhos azuis de muita boa pinta. Discretamente fui ao banheiro e lá permaneci os mais longos cinco minutos de minha vida, mas com um juramento feito: um dia contarei as histórias das traições tolerante, nos tempos em que tentávamos reciclar gentes e coisas.
Pedro Figueiredo
maio de 2009

Traições tolerantes
- histórias de um tempo em que
tentávamos reciclar gentes e coisas -

II


Uma bondosa mulher. Medicina sua profissão, visitava o galpão de reciclagem todas as quartas-feiras no fim da tarde. Juiz de direito era seu companheiro, homem grisalho, sem sorrisos nos lábios e de face tensa, que nem sempre chegava com ela. Falando em inglês, brincava: “time to tea”. Beijava distraidamente cada um que encontrava. Lembro sempre de seu andar esbelto, olhos claros, discretos, mas sua pele denunciava seus mais de 50. Sempre carregava balas na bolsa, nos bolsos do jaleco, que ora vestia, ora estava no banco de traz do carro. Uma vez não consegui manobrá-lo para que um caminhão carregado de lixo pudesse irromper no pátio. Disparava alarmes em toda a tentativa de manobra feita. Ela trazia para nós roupas sempre muito boas. Mostrava-se sempre eclética nos diversos tipos de assuntos que eventualmente eram abordados. Falava de políticas públicas, de creches, escolas de qualidade para os filhos dos pobres. Falava de saúde pública, provocava-nos falando de traições nos relacionamentos afetivos, defendia publicamente os homossexuais e a possibilidade de uniões formais estabilizadas.
Frequentemente apareciam moradores de rua no galpão e com eles os problemas. Pirulito apareceu em julho, pleno inverno garoento, procurando trabalho. Com aparência de menino, não tinha 30 anos. Sorriso tímido que realçava a beleza do olhar. Comeu muito naquela noite. A comida sempre era muito abundante – arroz, feijão, algum pouco de molho sempre se encontrava -. Num canto do refeitório improvisado, dormiu sob montanhas de plástico mole e caixas de papelão. É muito difícil deixar de ser morador de rua. Deixa a rua, mas a sua cabeça continua na insegurança dela. Tem medo de tudo. É perceptível em coisas aparentemente simples: não consegue separar-se de sua faca, de seus parcos pertences, come tudo o que pode em cada refeição, não sabendo do destino que o espera para o outro dia.

A bondosa e elegante mulher nunca escondeu a sua afeição por Pirulito . No galpão brincávamos: “ela gosta de balas e pirulitos”. Pirulito se fazia charmoso e discreto. Acordava às 5 da manhã, fazia halterofilismo com uma barra de ferro, nas pontas tinha latas usadas de tinta, cheia de concreto. Cada levantada era motivo para um gemido dolorido. Banho tomado, barba feita, depois do café, ou melhor; comia tudo que sobrava da janta com o café; saía Pirulito, feliz com seu carrinho na direção ao centro da cidade. Era forte. Às quintas-feiras, saía depois das 17 horas, mais bonito do que nunca , voltando lá pelas 6 da manhã do outro dia. Nas sextas, recebia a partilha e sumia. Voltava no domingo, sempre depois da meia noite, de banho tomado, e cheiroso como sempre. Surpreendia a todos o capricho da roupa simples que usava. Sempre bem passada, e combinando. Muitas noites o encontrei recendendo fragrâncias maravilhosas que dizia sempre, ser de procedência francesa, e jurava de pé junto que encontrava no lixo.

Numa tarde chata de domingo no Shopping ao estacionar o carro, enxerguei o juiz dentro de seu elegante automóvel. Abanou-me gentilmente num convite para que fosse ao seu encontro. Assistia um filme italiano em DVD portátil, com moderníssima tela de cristal liquido. “Enquanto elas compram, a gente se diverte como pode”, falou-me sorridente.
Em um daqueles recantos do shopping center, ao som de um pianista escabelado, estava o Pirulito namorando. Tomado por um misto de admiração e susto, discretamente disfarcei e me movimentei em direção a livraria próxima, olhei computadores, sapatos, tomei café... E tomado por uma curiosidade inquieta voltei, e através da vitrine vi que lá continuavam, como que encantados um pelo outro. Entrei na primeira sala de cinema que encontrei. Foi a sessão mais longa que assisti em toda a minha vida. Tomara que ao escrever esta memória, como numa psicanalise, se afaste de mim aquela imagem que me persegue, esgotando-me na tentativa de compreender a vida, os amores e suas mais diversas formas de manifestações.
Na quarta-feira, como sempre, a médica sorridente e jovial, distribuía beijos e balas aos trabalhadores, e falando "time to tea" convidou-nos para o chá, enquanto Pirulito muito suado e sujo, aparecia carregado de coisas que a cidade acabava de descartar. Após descarregar o carrinho, sumiu para reaparecer poucos minutos depois, de banho tomado e cheiroso como sempre. A nossa frente, ao vê-lo, desembrulhava um discreto sorriso.

Pedro Figueiredo
maio de 2009

Traições tolerantes
- histórias de um tempo em que
tentávamos reciclar gentes e coisas -

I

Virginia negra bonitona e vistosa, chegou em Porto Alegre há 30 anos atrás na boleia de um caminhão carregado de aipim, oriunda de um quilombo no interior de São José do Hortêncio. Foi parar num conhecido bordel da Voluntários. Depois de muitas perguntas sobre sua saúde, revisão dos dentes, a escalaram para acompanhar um fazendeiro que vinha visitar seu filho que estudava na capital. Depois daquela noite, experimentou todos os tipos de noites e as mais indiscritíveis formas de desejos. Teve 5 filhos. Criou todos atrás do Morro da Polícia. A noite foi sempre sua companheira. Seus prazeres, seus trabalhos. Certa vez me contou que cozinhava num daqueles restaurantes que varam a noite entre a Voluntários e a Farrapos, a serviço da prostituição noturna. A filha, já crescida vendeu sua casa e sumiu. Com as duas netas, varizes nas pernas, poucos dentes na boca, Virginia foi morar na marquise da estação do metrô Mercado. Nas últimas noites, antes de chegar no galpão de reciclagem, varria as ruas da capital pela madrugada. As netinhas foram recolhidas e acabaram morando num abrigo de meninas no Bairro Santo Antonio.
Quando cheguei pela manhã na segunda feira no galpão, ela já tinha limpado tudo. Pátio, banheiros, panelas...
Os dias passavam enquanto Virginia mancava silenciosa e obediente, trabalhando o dia todo. Era pau prá toda a obra. A todos servia. Benzia e na mesma hora recomendava o chá adequado.
Com o passar do tempo, Virginia foi ficando triste e encontrávamos chorando pelos cantos. Dolores, a chefona do Galpão se ofereceu para levá-la ao médico. Diagnostico: depressão. Dolores comunicou numa rápida reunião: Virginia precisava ir ao psiquiatra todas as quintas-feiras pela tarde. Dolores, de pronto, repassou suas responsabilidades da mesa de triagem às outras companheiras de trabalho, e lá ia Virginia, visivelmente contrariada, choramingando, quase de arrasto para a consulta com o "maldito psiquiatra". Sol causticante, garoa gelada. Dolores puxava Virginia... lá iam elas, dobravam a esquina e se perdiam entre multidões de carros fumacentos e pessoas endoidecidos da esfarrapada Voluntários.
Benedito era o companheiro de Dolores, pessoa de perfil dócil e afetuoso. Dolores, mulher de personalidade forte e fogosa, a todos envolvia com suas iniciativas. Mandava e desmandava naquele grupo de miseráveis do galpão que alí se amontoavam pela necessidade de teto, comida e afeto.
De vez em quando Benedito me entregava, cartas enormes, pequenos bilhetes, que ele escrevia secretamente declarando seu amor incondicional por Dolores. Muitas e muitas vezes me surpreendi, sugerindo que trocasse palavras, adocicasse termos, invertendo-os, propiciando musicalidade ao texto. “Ela é linda, Pedro”, “veja como ela é doce”, ou “Deus é bom, meu deu este presente”. Bom pai, os filhos adoravam Benedito. Adoçava o leite do jeitinho que o filho pedia, fritava pasteizinhos de goiabada no domingo de manhã levando na cama para o café com Dolores. Numa noite de sábado, apareceu com Dolores no colo em meu quarto, falando em seus olhos diante de mim, de como o amava.
Naquela tarde de quinta-feira com os olhos arregalados apareceu Benedito na porta: “Um homem acaba de telefonar dizendo que Virginia passa mal em um banco da Praça da Alfândega“.
Lá Benedito foi encontrar Virginia, que chorava ao ombro de um dedicado office-boy que num impulso solidário acompanhou os acontecimentos sem muito compreender. O compadecimento juvenil entrou em ação ao ouvir seus gritos de socorro, ao ver sua bengala ser jogada fora por um casal de namorados no meio dos arbustos da praça. Foi dele que Benedito recebeu o telefonema assustador.O office-boy quase que entregando Virginia ao homem que chegava, saiu de fininho, apavorado para terminar suas tarefas daquela tarde gelada.
Benedito escuta Virginia, não acreditando no que ouve. Está convencido que Virginia blefa. Inventa, enfim... “ha mais de um ano, Dolores, todas as quintas-feiras, das 14 às 17 horas freqüenta um hotelzinho barato na rua da Ladeira“. Durante todo esse tempo, Virginia nunca foi a nenhum psiquiatra. Faça chuva faça sol, nem Dolores nem Virginia não faltavam os compromissos imperiosos: Virginia na praça sentada no banco, quente ou gelado, com sua bengala escondida. E Dolores, no motelzinho barato, transa faceira, feliz... Tudo continuaria, se naquele dia, a velha Virginia não tivesse quase congelado suas frágeis pernas no frio glacial naquela tarde. “Benedito te esconde, lá vem eles” fala baixinho a velha Virginia, que já se sentia aquecida, pelo casaco surrado que o cobria.
Escondido, o suor escorria. Benedito tremia. Mas tinha certeza de que seus olhos não o traíam: lá vinha Dolores feliz, adelgaçada pelo prazer despendido. Recolheu a bengala, devolvendo a Virginia. Para completar a desgraça do Benedito, ao lado da Dolores, estava Floriano, o cara forte e parceiraço de tempos antigos. Depois de rápidos cumprimentos, Virginia se levanta. Dolores identifica o casaco surrado, e congela. Ao virar-se, Dolores vê Benedito pondo um fim ao banco da espera. Calmamente Benedito diz entre soluços, “não acredito, não acredito”. O mau estar se desfaz com certa rapidez, e assim, voltaram os quatro pra casa, absurdamente conversando as amenidades cotidianas de um galpão de reciclagem.
Sorrateiramente passaram-se os dias. Num crepuscular fim de tarde, o Catarina – mulato malandro, que degolou a mulher e fugiu para o sul - chegou silenciosamente em minha janela, fazendo sinal que viesse olhar para o outro lado do muro. Desconfiado, enfiei meus olhos no pequeno buraco. Não acreditei. Olhei novamente tentando arrancar os demais tijolos que estreitavam minha visão. O inesperado eu vi: Benedito e Floriano, docemente beijavam-se, abraçados um ao outro sob o testemunho da lua cheia.

Pedro Figueiredo
maio de 2009