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Três pequenos relatos
de dores femininas
Ao cheiro de terra molhada do pátio varrido a pouco, misturava-se o perfume das madressilvas silvestres. Os perfumes natalinos eram cheiros já há muito conhecidos: fornadas de bolachas doces que sucediam-se a outras de perus e porcos que com o calor do forno antigo, derretia-se a banha. Enquanto a gurizada se divertia de esconde-esconde, cobra cega no pátio gigante, homens e mulheres da vizinhança, compadres e comadres beliscavam choriços, misturadas à cachaça pobre, trazida do povoado decadente.
Já se tinha dado pela falta de Macau – que não era o porco – o anfitrião da festa. Mas..., enquanto o tempo passava e algumas cabeças começavam a rodopiar sob o efeito do ópio nobre, Jurema angustiada se perguntava onde se meteu Macau, o amor de sua vida.
Gritos de “Macau” começaram a se espalhar em volta do pátio na direção da mata fechada: silencio! Homens se agrupam e se aventuram aos gritos para o seu interior: Macau..! Macau...! o silencio responde com um eco envergonhado...
De repente um grito surdo de pavor irrompe do meio da destrambelhada gurizada... Um deles vê Macau roxo, iluminado pela luz da luz cheia, dependurado no maior de todos açoita-cavalos, cuja sombra em dias quentes, afiava-se facas e facões, carneava-se porcos, depenava-se galinhas, limpavam-se os jundiás dos poços silenciosos do girimunzinho, riozinho que cortava aquelas terras pobres de gente pobre que tocavam a vida, plantando mandioca, amendoins, arroz do seco e tantas coisas mais. Viver prá eles, era criar os filhos que Deus lhes dava para amar, plantar a roça e trocar por farinhas, açucares e alguns tipos de panos prá cobrir o corpo.
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Os natais se sucederam martelados por aquele pesadelo inesquecível. Os meninos cresceram. As luzes da metrópole inebriaram também seus olhos. Jurema não capinava mais a roça de mandiocas e amendoins e já tinha chorado todas as lágrimas pelo Macau amado, que ficara esquecido na tumba antiga, cercada de maricás silvestres.
Hoje trocara enxadas e ancinhos por vassouras, panos ensopados de detergentes. Cheiros estranhos o embalavam na limpeza do condomínio da baixa classe média que além de pagarem-lhe um salário parco, lhe ajudavam a criar os cinco meninos que se acotovelavam no barraco na Assis de Farias, periferia da Guaíba fedorenta, cidade gaucha que o capitalismo global resolveu fazer dela o arroto de uma civilização decadente.
Mas os meninos cresciam... As meninas já chamavam Jurema de “minha sogra”. Mas os natais eram todos iguaizinhos: sob a luz da lua cheia não tinha um que não lembrava de Macau lambuzado da cor roxa o corpo inteiro. Jorginho o mais velho, aparentemente tinha esquecido do semblante de Macau, mas quando sentado no ônibus ou na madrugada insone, não cansava de se perguntar por que a boca de seu jovem pai, não tinha recolhido sua língua enorme, esbranquiçada... Para Jorginho, o passar dos anos desfigurou-se a imagem de seu pai, Macau não era mais Macau, o pai gracioso, amoroso e forte, mas transformou-se numa língua enorme a atormentar seus dias.
Jurema preparava as roupinhas na espera para o primeiro neto. Mas naquele Natal, em um salso chorão no beco dos fundos da Assis de Farias nº 35, a pobre mãe retirava da corda Jorginho, perseguido pela língua, silenciosa e roxa do pai que sem nenhuma explicação partiu naquele antigo Natal de medos e pavores que perseguia os dias.
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Numa madrugada, dos outonos destas vidas cansadas, o celular toca freneticamente: “mataram o filho da Marlene”...quem? depois de um pequeno silêncio, volta a vós entre soluços, “mataram o filho mais velho da Marlene”.
Virei de lado tentando conciliar o sono. Nada. Vira, desvira. Nada.
Dei umas voltas no jardim com a cabeça ensopada de destempero – a natureza começou querer dialogar comigo – tentando entender o que houvera, pois Marlene tinha muitos filhos, por que lhes teriam raptado mais um?
Porque a vida tem de ser tão amarga com os pobres? (apesar de alguns afirmarem que o sofrimento e a amargura do viver humano destila-se nos corações de todas os viventes, com a diferença dos subterfúgios criados por ambas para o disfarce da dor).
No galpão um amontoado de recicladoras. No centro Marlene silenciosa, rosto inchado, – também ela já tinha chorado todas as lágrimas – não chorava nadinha quando lhe abraçavam. Alguém da rodinha, solidária com a mulher dolorida, cuidadosamente murmura: “vá prá casa Marlene, descansa...” ela responde: “o que vou fazer em casa? Lá ficarei sozinha, aqui vocês estão comigo na espera do meu menininho morto”.
Passou-se as horas. Suspendeu-se o turno de trabalho daquela manhã. O lixo deixou por algumas horas de ser o centro de suas atenções, e em torno de Marlene continuou o rosário de histórias de sofrimentos. Uma delas que ajudou consolar Marlene, foi a história da dolorida Jurema, que de tantos natais passados não chorava mais seus mortos.
Sinais inequívocos de sofrimentos, que como um véu encobria seus rostos turvos e silenciosos.
No outono
de 2011
Em terreiro de pobre, compadre,
desgraça dá de abastança,
não se vê outra planta.
Jorge Amado – Tereza Batista Cansada de Guerra –